capítulo 2

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Felipe

Diante da Bucólica construção de pedras, erguida com óleo de baleia e sangue escravo, a qual por longos anos chamei de lar, mantenho-me inerte por um longo tempo.
Não sei dizer ao certo se alguns minutos ou horas se passaram, comigo ali, espreitando a construção, a ilha, e tudo o que ela já significou e agora expressa em minha vida.

Ao embarcar em minha derradeira volta para o Sul, para as terras de meu pai, a tarefa não me parecia dificultosa em demasia. Porém, quando em fim observei a ilha se avolumar a minha frente, quando suas pedras, sua flora e até mesmo as pessoas que ali vivem - não por vontade própria- se tornaram nítidas a olho nu, senti que deveras não seria descomplicado, tampouco prazeroso.

No momento em que a pequena embarcação a remos guiada por escravos na mira da chibata de Porfíro adentrou o pequeno canal de acesso do Porto Sul, infindáveis lembranças me invadiram arrancando o ar dos meus pulmões.

O curso que na verdade é o único acesso de embarcações à ilha, é pequeno, permitindo apenas a passagem de um barco a remos por vez. Com aproximadamente vinte metros de comprimento e cinco de largura, cercado por dois paredões rochosos constantemente vigiados por criados de meu pai, é praticamente impossível entrar ou sair sem que seja autorizado por ele.

Sinto os olhos marejar ao recordar as inúmeras vezes em que nadei com Ana neste canal. Uma época em que nossos sentimentos não pareciam explícitos, muito menos perturbáveis para aqueles que tanto se importam com cor.

Quantas vezes nos lançamos a esse mar, com essa visão? Com essa mesma paisagem a nós cercar ?

Corro meus olhos pelo entorno e absorvo cada detalhe e cada saudosa lembrança.

~

-O que tem lá? - Aponta Ana. - Logo ali, naquelas montanhas.

-Nova Ericeira, acredito. A ilha também faz parte deste distrito. E ali, - aponto para as terras que quase escapam de nosso campo de visão - acredito que sejam as terras de Nossa Senhora do Desterro. Meu pai tem negócios lá. Armações Baleeiras e fazendas de açúcar. Eu e mamãe viviamos em uma destas fazendas antes dela adoecer e papai nos trazer para cá, onde supostamente o ar mais puro lhe faria bem. - dou de ombros.- Parece que afinal das contas, meu pai não sabe de tudo, já que de nada adiantou nos mudarmos para esse fim de mundo.

Lanço uma pequena pedra ao mar com toda a força que consigo conjurar em meio aos soluços que fazem meu corpo estremecer em meu pranto.O segurei por tempo demais. Agora a barreira em meus olhos se rompeu, libertando uma enxurrada de lágrimas.

A dor que cortava meu peito era como um apocalipse interno, onde cada parte do meu corpo, por menor que fosse, se rompesse em milhões de pedaços. E eu duvidava que algum dia os cacos fossem remendados. Minha doce mãe acabara de partir. Eu nunca mais a veria. Não sentiria outra vez seus dedos em meus cabelos, acariciando-os, ou seus lábios em meu rosto, beijando-me. Ela jamais me acalentaria, ou me defenderia das malditas surras de meu pai. Ela havia partido. Minha linda e doce mãe, roubada de mim por uma maldita febre e um maldito pulmão fraco.

Que Deus rouba a vida de uma mãe amorosa e permite que um pai cruel viva?

Sutilmente Ana se aproxima de mim.

Ela é tão pequena. É apenas dois anos mais nova que eu, mesmo assim sua estatura é demasiadamente pequena e magra para oito anos.

Mais de uma vez me perguntei se seus pais não a alimentavam corretamente.
Que tipo de pai deixava sua filha sempre vestida em trapos e magra de dar dó?

Aquarelas de LiberdadeOnde histórias criam vida. Descubra agora