Capítulo 4

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Felipe

Dentre todos os lugares que mais odeio no mundo, o Porto está no pico da lista, seguido de perto pelas senzalas. 

Em cada porto deste  Brasil existe um mercado de Escravos. 

Do ponto de vista comercial é notoriamente  pratico expor os escravos que chegam nos navios Tumbeiros- um nome apropriado visto que quase metade dos prisioneiros morrem no caminho- em locais próximos ao desembarque. Ou seja, nas praias ao longo do Porto. O que, em minha nada secreta opinião, é completamente repugnante. Assim como toda e qualquer atividade escravista que se empregue.

Quanto tempo mais levará para que os homens parem de fazer mal uns aos outros em virtude da ganancia?

Fito compenetradamente meus pés enquanto atravesso a passos largos o mercado de Escravos em Nossa Senhora do Desterro. 

Para todo lugar que  olhe, além dos meus pés, vejo correntes e grilhões aprisionando homens, mulheres e crianças que foram arrancados de suas terras, de seu lar, de sua família, e vendidos como “peças”. 

“Peças”. Repito, testando a sonoridade e o sabor da palavra em minha boca.

“Peças”.

Como peças de vestuário, de decoração, ou  peças... de carroça.

“Peças”. Não pessoas.

-Vejam Senhoras e Senhores, tenho aqui uma bela “peça”. - Anuncia um comerciante de escravos. “Peça”. Repito mais uma vez com os lábios sem proferir a palavra. Apenas testando-a com indignação.- Um belo reprodutor.- prossegue com sua apresentação enojando-me ainda mais.

Ergo meus olhos na direção de sua voz. Não por curiosidade, tampouco por interesse, o único sentimento que me move neste momento é a repulsa.

Um homem, Deus! Este miserável está vendendo um homem. Algo extremamente mórbido e fora de compreensão. E , como se não bastasse, o está tratando publicamente como um cavalo.

Oferece-lo como um formidável espécime reprodutor?

Deus! Oh Deus, tenha piedade de nossas almas.

   Estaco no lugar de imediato.
Minha boca seca e meus olhos se inundam com lágrimas diante da cena que se desenrola a minha frente.

Sobre um palanque improvisado o homem negro apresentado como “belo e viril reprodutor” encontra-se nu e acorrentado. Correntes e grilhões atam seus pés, mãos e pescoço, mantendo-o muito firmemente em sua posição de exibição. Ao lado do palanque uma gaiola-carroça carrega uma jovem mulher negra que, com todas as suas forças, abraça aquela que acredito ser sua filha.

É para elas que o “belo e viril reprodutor” olha sem parar. E é por elas, muito provavelmente, que não se rebela diante de tamanha humilhação.

Isso me faz pensar sobre os limites que transpassamos  por quem amamos. O que somos capazes de fazer e tolerar em nome da vida e da proteção daqueles que nos são caros?

Nojo e vergonha são os sentimentos que me invadem diante da maldade do mundo. Maldade esta que aqui está explicita.

Me sinto impotente.Não apenas diante da  situação especifica deste pobre homem, mas sim de todo seu povo. Me sinto um inútil e covarde.

Aquarelas de LiberdadeOnde histórias criam vida. Descubra agora