Capítulo IV

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Um Homem Interessante


As capinas de Urín amanheceram com um sol encafifado, que a todo momento se escondia do único olho do Sr.Crustáceo Apolinio, como se tivesse vergonha de mostrar sua perfeita luz vermelha da manhã, como uma criança que busca se proteger na saia da mãe na presença de estranhos; e ele aproveitava qualquer aglomerado de nuvens que cruzasse seu brilho para outra vez se esconder, e só resolvia reaparecer quando o homem da montanha não estivesse mais o encarando. Crustáceo parecia não ligar para ele. Quando as nuvens iam embora o sol ressurgia, o calor voltava, seus cabelos mal-lavados coçavam e suas costas suadas e cabeludas pinicavam. O Sr.Crustáceo tinha um rosto nada adorável, e por isso conseguimos entender o porquê o sol não gostava dele. Mas o homem da montanha brandia um grimório fascinante na sua sofisticada cinta de couro, e uma nobre bainha para sua espada curta. Os muitos anos vividos não lhe era um problema, nem lhe fadigava, pois ainda era um homem muito hábil: tinha mãos ages para fazer calda de chocolate, pés leves para subir pinheiros escorregadios e um faro impecável para encontrar pêssego, morango e uvas de oliva na frauda da colina. Um verdadeiro faz-de-tudo. O Sr.Crustáceo estava sempre disposto a espantar os ursos que visitavam sua cabana pelo bosque da floresta e proteger seu gado e sua floricultura dos lobos que desciam a montanha.

Crustáceo era o tipo de homem que preferia ver o mundo através de uma garrafa de rum, e isso lhe custou muitas coisas preciosas. Mas ele tinha uma alma lírica e poderia amar nas piores condições. Na guerra das terras termais de Qambam Glack ele fez juras de vingança ao Lorde Mandrazo da casa Sosum de Fayora em virtude de suas irmãs assassinadas, mas ele infelizmente se afogou em uma garrafa de vinho tinto antes mesmo de tocarem as trombetas na manhã da batalha. Quando a poeira abaixou o Sr.Crustáceo acordou no pasto, e o homem que jurou matar já estava morto. Sua promessa se despedaçou.

Ah, eu sei: tu tá se perguntando quem diabos é Crustáceo, não ?

Bem, ele ainda vivia à procura de dragões e verificava qualquer rastro que suas asas pudessem deixar marcado nas nuvens; as observava por dias inteiros enquanto entupia-se de bebida antiga. Todas as alvoradas de quinta-feira podia-se vê-lo nas colinas do torrão de Solfísgur secando os beiços com a manga de sua camisa verde, sentado numa poltrona velha sob o canto de pássaros vagabundos, ao pé de um pessegueiro que considerava sagrado. Lá fazia suas orações e suas preces. Embora em outros tempos tenha sido um caçador muito disciplinado e concentrado, Crustáceo jamais conheceu as magistrais criaturas aladas. Falava que elas ainda existiam, não sabia aonde, mas poderia abrir mão de sua casa em troca de um encontro com dragões. Pobre Sr.Crustáceo. O destino não lhe foi carinhoso. Alguns camponeses o chamavam de louco, pois, como verás um dragão estando completamente bêbado ? Talvez eles já tenham visitado o céu que de sua terra, mas não notaria nem que voassem por cima de sua cabeça.

A primeira vez que Crustáceo roubou foi porque teve fome. As dores por apanhar quando era pego fortaleceram sua coragem. Crustáceo nunca teve medo de roubar e por nenhuma hipótese sentiu vergonha do que fazia. Uma vez, ele esteve com tanta fome que se tivesse em sua posse uma carne de carneiro, não dividiria nem com o mais pobre. Crustáceo, quando ainda era um jovem fedelho esperto, decidiu roubar ouro do castelo Yara e comprar ele em pessoa a carne mais suculenta dos caçadores do reino médio; ele invadiu secretamente a muralha Lorde e adentrou as janelas baixas. Sua missão era apenas uma: roubar o quanto de ouro pudesse carregar ou algum baú valioso que tivesse a sorte de encontrar. Mas quando o coitado atravessou o salão principal, poxa vida, se deparou com a grande mesa do banquete real sendo preparada pelos chefes de cozinha. Ah, como ele estava faminto.

Ora jaziam travessas de carne com batatas ora traziam pratos, talheres, bacias cheias de água e toalha de linho para os nobres se limparem, caldeirão com caldo de verdura e sopa com flocos de amêndoa triturada para antes da refeição principal, torta de milho e massa folhada, mingau de banana em canecas de café, pastes fritos e outros petiscos do mar; voltavam para a cozinha e retornavam com mais comida: porco assado e maçã doce bastante avantajada, bacalhau, bife cozido e peru grelhado. Era o paraíso, só podia ser. O cheiro era irresistível. Crustáceo esqueceu-se do ouro e roubou o maior frango da mesa. Sem olhar para atrás ele correu o mais rápido que pôde, e por fim esteve longe o suficiente do castelo para que pudesse come-lo. A emoção do sucesso o ensinou que aquilo era certo para não morrer de fome. Suas mãos estavam lambuzadas com o molho da carne branca. Lascou a primeira mordida escondido atrás de uma carroça, e logo em seguida ouviu uma voz triste, uma voz sem dono.

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