Capítulo V

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Par Perfeito


O sol se abriu como o florescer de uma rara rosa de pétalas douradas por dentro das nuvens manchadas de escuridão e se declarou inimigo da inacabável tempestade. Nos céus, a guerra foi manifestada e sua vitória enfim estava próxima e, não com gestos vulgares de escudos e espadas, mas, é claro, com grandiosos relâmpagos que se chocavam contra o pico das maiores montanhas. Por muitos dias Ele se fez forte para digladiar, e criou com outras nuvens uma importante aliança: as tornou quentes e poderosas, e as enviou para a batalha. Cada golpe caia em terra os maiores dos trovões, até finalmente sua divina luz vermelho-dourada nascer por dentre os inimigos derrotados. Conforme o seu raiar penetrava o assoalho abatido da cabana de Crustáceo, o molhado da grama evaporava, e o dia ficava mais agradável. Os primeiros seixos de sua intensa luz agora confortava as montanhas, depois os campos, e por último os lagos e riachos. O céu era de um alvorecer brilhoso e liso. As nuvens iam indo embora, se afastando e recuando da batalha após infinitas noites frias e chuvosas. Os pássaros cantavam novamente, às vespas voavam de seus casulos da beirada da porta, o rio da ponte lá embaixo na margem corria sobre as rochas pequenas, e as ovelhas e vacas e porcos saiam do curral em busca de comida, à procura de estrume e morrendo de vontade de se divertir na campina ao sentir, depois de muitos dias, o prazeroso calor do sol.

— Nossa ! que bela manhã. — disse Crustáceo da janela do quintal.

Crustáceo já aprontava sua mochila e suas tralhas, suas panelas e suas canecas, seu rum e sua comida, todos as verduras do armário e todas os pães da bancada; empacotou tudo em panos de linho, enrolou cordas grossas e pesadas nelas mesmas, juntou um par e engatou na mochila, dobrou um saco de dormir e ameaçou lá dentro. Apanhou algumas frutas, um potinho com sal para salpicar os peixes que já planejava pescar em lagos de terras afastadas do torrão, e uma barraca puída para dias com chuva. Uma faca, na verdade mais de uma — que há muito perdera o fio de corte —, e bolachas e algumas balas. Ameaçou tudo e aos suspiros fechou o zíper. Saiu pela porta, se dirigiu ao curral e catou um machado: bainhou na cinta e assegurou de que estivesse bem firme e guardado. Crustáceo, apesar de não dar importância a troca de seus trajes, optou por levar uma meia a mais e duas camisas a menos.

— Isto ! uma meia. — disse Crustáceo. — Não. Três, levarei três.

Apanhou às pressas no armário e guardou na mochila, se enfiou num agasalho gordo e alongado e se colocou dentro de calças de caçador costuradas a mão; também sua melhor bota, seu melhor chapéu e seu tapa-olho de couro-claro; mas não antes de pentear seu cabelo e se arrepender de não ter tomado banho ontem, pois, agora não havia mais tempo para isto. Reuniu forças e cheirou o sovaco, e ficou feliz por não estar tão ruim. Aprontou o resto das coisas. Pegou suas ervas e suas sedas, e já ia saindo pela porta quando se lembrou dos fósforos.

— Que cabeça a minha ! — disse ele, abrindo uma, duas, três, dez gavetas.

Crustáceo procurou no quarto, debaixo dos tapetes empoeirados e no pé da ondulada mesa da sala, mas não achou. Por vez questionou se alguém havia roubado ou pego sem avisar.

— Calvin ! só pode ter sido o Calvin, aquele nanico insolente. — bufou Crustáceo.

E já ia saindo pela porta quando lembrou que não estava levando seu grimório.

— Pelos meus pelos ! — gritou consigo mesmo. — Acalme-se. Elayla não irá sem você.

Voltou, fechou a porta e vasculhou o bolso dos casacos no armário, nas caixas e entulhos emaranhados debaixo da janela e também no amontoado de papeis velhos espalhados no flanco; deu passos ligeiros para a sala e enfiou as mãos na pilha de livros de capa grossa abandonados na estante que há muito não era limpada, e procurou no meio da multidão de vasos. Parou. Respirou. Deu passos ligeiros para a dispensa e notou que lá não havia nada além de sobras, por menos o grimório; retornou para o apertado corredor e fuçou nos montes de pergaminhos e cartas largados em cima da mesinha, e também nos cômodos, e também na prateleira, e também na cristaleira, e também debaixo das cadeiras. Parou. Respirou. Voltou a procurar nas gavetas, nos entulhos, nas pilhas e depois nos arbustos que invadiam a casa pela janela sem sua permissão, mas não o encontrou. Desistiu, soltou uma bufada e se deu por vencido.

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