A primeira carta.

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POV Any

O relógio marcava 19h30. Jantar não era uma opção elaborada para aquela noite. Na verdade, foi um macarrão instantâneo, o tipo de refeição perfeita para quem acabou de levar um pé na bunda e não tem energia para enfrentar a cozinha. Eu estava sentada no sofá, rodeada pelo silêncio de um sábado à noite, sem saber o que fazer com o tempo que se arrastava. "Mente vazia é oficina do diabo", dizia minha avó, e eu sabia que ela estava certa. Decidi procurar Sina Deinert no Instagram, só para confirmar o que já suspeitava. Loira, olhos azuis, praticamente uma modelo. Era como se a insegurança que sempre esteve em mim ganhasse vida de novo. Já passei por tanta coisa – fui menosprezada tantas vezes pela cor da minha pele, pelo meu cabelo crespo, pelas curvas do meu corpo. Mas Noah sempre foi a voz que me lembrava que eu era linda, perfeita do jeito que eu era, e que ele nunca me trocaria por ninguém. E agora? Onde ele está?

Antes que o pensamento se aprofundasse, ouvi batidas suaves na porta. Sabia quem era, então nem perguntei antes de abrir.

— Oi, Josh! — sorri, tentando parecer mais animada do que realmente estava.

— Oi, Any! Vim trazer o pão caseiro que prometi mais cedo. — Ele levantou o pão quentinho entre as mãos, e o cheiro delicioso tomou conta do ar.

— Eu disse que não precisava — respondi, mas a verdade é que precisava sim. Meu estômago até roncou.

— Você me deu a farinha, então é o mínimo que posso fazer. — Ele riu, e eu fiz uma careta de indecisão. Mas o pão... ah, aquele pão estava pedindo para ser devorado.

— Como uma amiga minha diria, comida grátis nunca se recusa! — Nós dois rimos juntos.

— Essa sua amiga é sábia — ele brincou, ainda sorrindo.

— Na verdade, ela é a Sabi — respondi com um trocadilho bobo, e ele franziu o cenho, confuso.

— Quem?

— Nada... esquece! — Sorri, mudando de assunto. — Obrigada pelo pão. Se for tão bom quanto seus biscoitos, deve estar maravilhoso.

— Bom, vou indo então. — Ele começou a se afastar, mas senti uma necessidade estranha de prolongar aquele momento, de ter um pouco mais de companhia.

— Não quer ficar para comer o pão comigo?

Ele hesitou.

— Não quero atrapalhar...

— Você não vai atrapalhar nada, juro! — Insisti, sorrindo mais largo do que queria.

— Bom, já que insiste... Vou só pegar o chocolate quente lá em casa e já volto. — Ele sorriu de volta e desapareceu pela porta.

Fechei a porta atrás dele, mas deixei destrancada. Me peguei falando sozinha, algo que sempre faço quando estou nervosa.

— Parabéns, Any. Conhece o cara em um dia e já está flertando, só porque levou um pé na bunda... — Suspirei, balançando a cabeça para mim mesma.

— Falando com alguém? — A voz de Josh veio de trás de mim, me pegando desprevenida. Ele já estava de volta, com uma garrafa térmica nas mãos.

— Ah! Não, só... eu falo sozinha às vezes para organizar as ideias. — Respondi um pouco envergonhada, tentando não corar.

— Hm, interessante! Vamos comer antes que o pão esfrie, então?

Fomos para a cozinha. Eu coloquei manteiga, duas canecas, e uma faca sobre a mesa, enquanto ele despejava o chocolate quente nas canecas e cortava o pão, que ainda estava quentinho. A manteiga se derretia instantaneamente ao toque, e quando dei a primeira mordida, fui transportada para a infância. O gosto era idêntico ao do pão caseiro que minha avó Val fazia para mim.

— Meu Deus, Josh, isso está delicioso! E o cheiro... é maravilhoso!

— E olha que eu nem tomei banho! — Ele brincou, e eu lhe dei um leve soco no braço.

— Não, bobo! Estou falando do pão, claro!

— Ah, o pão é bom, mas eu sou melhor! — Ele piscou, provocando.

— Haha, engraçadinho. — Dei uma risada forçada, tentando não parecer tão desconcertada pela provocação.

Entre risadas e conversas, acabamos o pão e o chocolate quente.

— E você trabalha com o quê, Josh? — Perguntei casualmente, enquanto limpava os farelos de pão da mesa.

Ele se engasgou um pouco com o último gole de chocolate, me encarando com uma seriedade que eu não esperava.

— Trabalho com tecnologia, de casa — respondeu, seco, como se quisesse encerrar o assunto.

Havia algo na forma como ele falou que me deixou intrigada, mas decidi não pressionar.

— Que coincidência! Eu também trabalho em uma empresa de tecnologia.

Ele ergueu as sobrancelhas, interessado.

— Sério? Que legal! Me conta mais sobre a empresa.

— Bom, é uma empresa grande, mas bastante misteriosa. Eu sou advogada na área de administração, mas o dono... nunca aparece. Ele só participa das reuniões por hologramas. Ninguém nunca o viu pessoalmente.

Josh pareceu ponderar minhas palavras.

— Hm, interessante...

Conversamos por mais um tempo, sobre amenidades, até percebermos que já eram 23:00.

— Acho que já é a minha hora — disse Josh, levantando-se. — Amanhã é dia de trabalho.

— Obrigada pela companhia, Josh. Foi bom te conhecer.

— O prazer foi meu, Any. — Ele sorriu e saiu, deixando o apartamento envolto num silêncio confortável. Me deitei na cama, pensando que, pelo menos, eu tinha feito um novo amigo. E ele sabia cozinhar!

No dia seguinte, acordei mais animada. A tristeza do término ainda estava lá, mas eu estava decidida a seguir em frente. Tomei um banho, lavei o cabelo e me vesti com uma calça jeans, uma blusa social branca, um blazer preto e tênis brancos. Fiz uma maquiagem leve, coloquei minhas argolas favoritas e desci para tomar café, comendo mais uma fatia do pão que Josh havia trazido.

Quando abri a porta do apartamento para sair, notei um envelope rosa no chão. Havia uma rosa branca em cima do envelope, como um presente deixado ali por mãos invisíveis. Peguei ambos e entrei de volta. Coloquei a rosa em um vaso com água e abri a carta.

As palavras me atingiram como uma brisa suave, mas firme:

"AME-SE O SUFICIENTE PARA DAR CONTA DE SEGUIR EM FRENTE QUANDO TE DEIXAREM PARA TRÁS. E LEMBRE-SE: VOCÊ NUNCA SERÁ PERFEITA PARA TODOS, MAS SEMPRE SERÁ PERFEITA PARA A PESSOA QUE TE MERECE."

Com carinho, MO.

MO? Quem é MO? E por que essas palavras me tocaram tanto? Como essa pessoa sabia exatamente o que eu estava passando?

Olhei para o relógio. Droga, estava atrasada. Deixei a carta sobre a mesa, peguei minhas chaves e saí correndo para o trabalho, mas minha mente não conseguia largar o mistério. Quem era MO? E por que parecia saber exatamente o que dizer, no momento certo?

No escritório, mal consegui me concentrar nos documentos. Minha cabeça estava cheia, entre a carta enigmática e os pensamentos de Noah, que ainda pairavam como uma sombra. Mas talvez fosse bom... ter algo em que me focar além da dor de um relacionamento acabado.

"AME-SE O SUFICIENTE", repeti mentalmente. Sim, eu vou seguir em frente.

𝗖𝗼𝗺 𝗖𝗮𝗿𝗶𝗻𝗵𝗼 - 𝖡𝖾𝖺𝗎𝖺𝗇𝗒 ✔︎ Sendo Reescrita Onde histórias criam vida. Descubra agora