5- Eu quase assassino um caderno

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Eu odiava o quão lindo aquele sorriso era.
- Vocês se conhecem?- Vi perguntou.
- Costumava conhecer- eu murmurei.
- Sim, nós éramos amigas a um ano atrás- Alessa respondeu, ainda sorrindo.
        Eu quase murmurei um "foco no éramos", mas achei melhor me segurar.
       - E o que te trás aqui, a meio mundo de distância do Brasil?- eu perguntei com um sorriso amarelo.
       - Eu vim para a "Step Up Competition"
       Tentei não deixar meu queixo cair e falhei miseravelmente.
        - Você dança?- eu perguntei, esquecendo totalmente da postura "eu não ligo para você" que eu estava tentando manter.
         Ela assentiu.
         - Jazz e dança contemporânea. Eu fiquei impressionada com a quantidade de atividades extracurriculares , quando eu ouvi que eles estavam dando prioridades para dançarinos, eu decidi tentar entrar.
         Tantas escolas para escolher eu fui escolher logo a com uma maldita competição de dança e atividades extracurriculares.
         - O "Step Up" são  várias modalidades diferentes, e a nossa escola participa da maioria- Vi informou.
- Jazz, ballet, sapateado, tango, contemporânea, streetdance...- Alex falou, contando os tipos de dança nos dedos.
- Essa competição tem cara de ser um grande evento por aqui, já que todo mundo sabe tanto sobre ela- menos eu.
- De qualquer forma, é bom te ver de novo- Alessa disse com um sorriso, trazendo sua mão para perto da minha.
Eu me levantei bruscamente.
- Desculpem, eu estou me sentindo mal, vou voltar para o dormitório. Vejo vocês mais tarde!
Me virei e segui, sem olhar para trás. Achei melhor não o fazer, demonstraria fraqueza.
E a última coisa que eu precisava agora era ser fraca.
     Cheguei no quarto, fui até a pequena varanda e me debrucei no parapeito. O sol já tinha se posto a algum tempo, mas o céu ainda tinha tons claros de azul.
     Eu ainda estava com fome. Talvez teria sido melhor se eu tivesse decidido ficar até terminar meu prato, pelo menos, mas não, eu deixei minhas emoções tomarem conta de mim, como eu sempre fazia.
       Suspirei e fui pegar meu caderno na minha mochila. Talvez isso daria um poema, pelo menos.

"Já faz um ano
Que eu tento te esquecer
Mas tudo que eu faço
Me leva de volta a você"

       Eu ri baixinho. Aquilo era tão clichê, e com certeza não era nenhuma obra prima, mas, ninguém nunca leria aquilo mesmo. Eu tinha o direito de fazer poemas clichês e meia boca quando ninguém estava olhando.

"De volta ao seu sorriso
De volta ao seu olhar
De volta aos seus cachos
E à sua risada, meu antigo lar"

Não.
Eu risquei a estrofe. Primeiramente porque o último verso não estava fluindo, mas principalmente porque aquele parecia um poema de amor não correspondido.
Aquilo não era para ser um poema de amor.

"O seu sorriso ainda me hipnotiza
Nossa, isso soa tão clichê"

Eu estava muito perto da linha do "poema romântico" de novo, mas eu não queria riscar outra estrofe.

"Eu preferiria se não soasse assim
Pois eu quero distância de você"

     Ainda não estava fluindo muito, mas mostrava meu ponto de vista muito bem.
     -  O que você está fazendo aí?- Ília perguntou, parada atrás de mim e quase me fazendo derrubar meu caderno na sacada de susto.
     - Nada- eu disse, tentando esconder o caderno atrás das minhas costas.
     - Eu vi seu caderno e estou entre você estar escrevendo ou desenhando- ela disse, dando um pulo para se sentar no parapeito, com as pernas viradas para o lado de dentro da varanda- os dois são ótimas formas de expressão.
     - Você vai cair daí- eu disse, jogando meu caderno na parte debaixo da beliche.
     - Eu não vou, é perfeitamente seguro.
     - Eu tenho certeza que eu não descreveria sentar no parapeito do terceiro andar como perfeitamente seguro.
      - Tá, eu desço se você quiser- ela disse dando de ombros, entrando e se jogando na cadeira da escrivaninha mais próxima da varanda- mas você vai ter que me contar o que aconteceu lá no refeitório. Eu saí um pouco depois de você, fiquei preocupada com a sua reação.
- Você deixou seus amigos para checar se alguém que você acabou de conhecer estava bem?
- Exatamente. Quem era aquela menina?
- Uma conhecida- eu respondi, sentando na cama.
- Ela te chamou de amiga lá, e pela cara que você fez, ela parecia ser bem mais que uma conhecida.
Suspirei.
- Eu gostava dela a um tempo atrás. Ela não gostava de mim.
Ela continuou me olhando, e eu senti que só aquilo não seria o suficiente.
- Um dia, ela me beijou. E eu achei que ela estivesse gostando de mim por causa disso, mas para ela aquilo não tinha significado nada.
Ela ainda continuava em silêncio.
- Aí ela me chamou para a festa da nova namorada dela e beijou ela na minha frente- eu completei, o mais rápido que eu consegui.
- Isso explica muita coisa.
Eu suspirei. Quase que eu falei que o pior era que talvez eu ainda gostasse dela, mas achei aquilo pessoal para falar para uma garota que eu tinha conhecido horas atrás.
- Eu estou evitando ela desde então.
    Nós duas ficamos em silêncio.
    - Me desculpa- eu falei alguns minutos depois- eu te conheci hoje, eu não deveria estar jogando minha bagagem emocional em cima de você assim.
- Falar sobre o que está te incomodando sempre ajuda, então por mim eu não vejo problema em você falar comigo, se você quiser. Eu sei que isso vem de uma pessoa que conhece vocês duas a menos de doze horas, mas talvez você deveria dar para Alessa mais uma chance. Como amiga, eu quero dizer.
Eu dei uma risada fraca.
- Não acho que isso vá acabar bem para nenhuma de nós duas.
Ela começou a batucar os dedos um nos outros.
- Ser amiga de alguém que você gosta pode ser meio estranho no início, mas pouco a pouco as coisas vão voltando ao normal.
- Você é especialista no assunto?- falei com uma risada, fingindo não entender que ela assumiu que eu ainda gosto de Alessa.
Não que seja mentira, mas eu também não iria dizer que ela verdade.
- Tenho minha experiência na área- ela disse, com um sorriso fechado- Vi era minha ex. Ou melhor, é. Não tem muito como se deixar de ser ex-namorada de alguém então...
- Isso explica muita coisa- eu a interrompi.
- Como assim "isso explica muita coisa"?
- Você ficou super desconfortável quando ela sentou muito perto de você.
- Eu não fiquei super desconfortável- ela falou, levantando para me dar um pequeno empurrão no ombro- só uma quantidade normal de desconfortável. E eu já superei o fora, okay?
    - É o que eu falo para mim mesma todos os dias- eu falei, brincando.
     - Não, eu estou falando sério, eu realmente superei. Só que, embora nós  já termos melhorado muito, eu ainda estranho ter... contato físico com ela. 
    - Como assim?
    - Abraços, quando nossas mãos ou pernas se encostam por acidente, esse tipo de coisa.
     Eu sorri.
     - Eu também estranho quando as pessoas me tocam. No geral, não necessariamente minha ex. Até porque eu nem tenho uma ex- eu percebi que eu estava falando demais, do mesmo jeito embolado que eu estava criticando Ília por a pouco tempo atrás. Será que aquilo era contagioso?
     Ela sorriu de volta.
     - Eu tenho um motivo. Você só me parece ter aversão à pessoas.
     Eu errei no que dizer. Se ela não me achasse antissocial antes, ela com certeza me acharia agora.
    -  E qual o seu motivo?- eu rebati.
    Seu sorriso diminuiu.
     - É que é esquisito tocar amigavelmente em alguém que- ela começou a ficar levemente vermelha- você não costumava tocar tão amigavelmente assim. Eu não sei, eu me sinto meio desconfortável.
     - Eu acho que se você já tivesse superado, você não estaria pensando nesse tipo de coisa.
      - Eu superei, está bem? É que é difícil apagar a memória de quase dez meses de namoro.
      Ergui minhas mãos para cima.
     - Tudo bem, você venceu- eu falei.
     Antes que nós ficássemos em silêncio por tempo demais, Ília ergueu uma sobrancelha e me perguntou:
      - Você quer uma bebida?
      - Eu aceitaria.
       Só então eu notei as sacolas largadas perto da porta.
      - Eu parei no mercado perto da escola antes de vir para cá. Para comprar comida para nós fazermos no fogão elétrico e tal. Sem contar que, pela cara que você fez lá, eu achei que você iria precisar de algumas barras de chocolate e de uma garrafa de cerveja.
       - A minha cara ficou tão óbvia assim?- eu perguntei, e depois que eu processei o que ela tinha dito, adicionei quase gritando- Espera aí, você disse garrafa de cerveja?!
     - Você quer falar mais alto, eu acho que a inspetora do andar não te ouviu direito- ela disse, guardando as compras na geladeira.
     - Desculpa.- eu murmurei-  Eu não bebo nada alcoólico- eu falei em um tom mais baixo- achei que você estivesse falando de um suco ou algo do tipo.
     - Eu não costumo beber, só de vez em quando se eu estiver meio mal, ou em alguma festa. Achei que o primeiro caso pudesse ser o seu.
      Ela tirou duas garrafas de cerveja da sacola e as colocou dentro da sua mala, agora vazia, que estava parada junto com a minha ao lado da cômoda, provavelmente para esconde-las.
     - A escola permite trazer bebida alcoólica para dentro dos dormitórios?- indaguei.
      - A escola não permite bebidas em nenhum espaço do solo escolar- ela fez uma pausa- Bem, teoricamente, mas a maioria das pessoas traz mesmo assim.
     - Você não tem medo de descobrirem?
     Ela deu de ombros.
     - O máximo que vai acontecer é eu ser posta da detenção por uma semana. Talvez mandem um bilhete para os meus pais.
      - Eu preferiria não arriscar.
      - Eu prometo assumir responsabilidade total se alguém achar. Se sente mais segura agora?
       - Na verdade não- admiti.
       Ela abriu a pequena geladeira e estendeu uma das duas garrafas d'água que tinham lá, pegando a outra para si.
       - De qualquer forma- ela bateu sua garrafa na minha- um brinde à superação.
       Eu dei uma risada fraca, repetindo as palavras:
      - À superação.

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