Eu talvez nunca entenda a lógica de sonhar enquanto morto, mas lá estava eu pairando no limite da existência mais uma vez, quando fui jogado em um sonho.
Me vi parado à beira de um abismo escuro e sombrio, com vozes me chamando das profundezas. Meu coração martelava no peito; não era um sonho, eram fragmentos de uma lembrança. Eu tinha voltado àquele momento inúmeras vezes em meus sonhos, mas a aflição e a dor eram intensas como novas. Quando ouvi minha mãe, senti que não suportaria. O poço sem fundo que levava a Helheim parecia me atrair, era forte demais. Senti o mesmo desespero de quando estava em Niflheim me sufocar. Dessa vez eu pularia, meus amigos não podiam me ver, eles nem saberiam. Então um novo fragmento surgiu.
Todas as vezes que revivera aquele momento eu só havia sido tomado pela dor e ressentimento, fazendo a cena que se seguiu parecer quase irreal, esquecida em meio ao meu sofrimento.
Eu sei, disse Alex, quando finalmente encontrou minha mão e segurou-a, me impedindo de despencar diretamente para Helheim, eu também estou ouvindo, mas você não pode segui-los. Seu tom de voz era gentil, como eu nunca havia escutado. Enquanto ela me afastava para longe da borda, segurando minha mão, vi o poço se fechando e o sonho mudou.
Ainda estávamos em Niflheim, mas regredi no tempo. Alex e eu caminhávamos com dificuldade no meio do gelo, agarrados um ao outro como à própria vida, na tentativa de permanecermos vivos ainda mais um pouco. Mais uma vez me senti revivendo o momento, o frio sugando todo o calor do meu corpo, meus pulmões e garganta gritando em protesto. A runa Hearth havia se apagado e eu sabia que morreria ali, toda a minha força se extinguindo. Então vi Alex estancar ao meu lado e me virei para encoraja-la, mesmo que minha própria energia se esgotara. A proximidade me permitia sentir o seu hálito de limão e o cheiro cítrico que emanava do seu corpo. E então ela me beijou pela primeira vez, fazendo meu peito inflamar.
Eu não ia morrer sem fazer isso., ouvi-a dizer, quando se afastou levemente.
Tão certo como naquele momento, tive a certeza de que aquele beijo foi tudo o que me permitiu chegar até a margem.
De repente tudo rodou. Eu estava de volta à minha cama no quarto de Valhala.
***
Pisquei, a claridade abrupta ferindo minha retina. Demorei algum tempo para organizar meus pensamentos. Lembrei de toda a insanidade daquela quinta-feira (pior.dia.de.todos), flashs girando ao meu redor, como se buscassem seu devido lugar na minha memória. Eu não sabia ao certo quanto tempo passara morto, Quantos torneios malucos e possessivos eu ainda seria obrigado a participar?, mas um único pensamento parecia coerente naquele momento. Eu estava vivo e livre, mais uma vez graças a Alex Fierro.
- Alex... – o nome escapou dos meus lábios em um sussurro quase inaudível.
- Ai que meigo. – soltei um grito abafado ao perceber que não estava sozinho. Corri os olhos pelo cômodo, procurando a fonte do som, apesar de saber exatamente quem falara.
Confesso que o meu cérebro recém-ressuscitado demorou para localiza-lo, mas, em minha defesa, meus olhos procuravam por um garoto alto em uma mistura de verde e rosa, não o minúsculo gatinho preto que se enroscava na minha poltrona. Quando finalmente o vi, seus olhos castanho e mel me encaravam, o que já seria bastante assustador se ele fosse um gato normal. Em um movimento ágil, ele pulou para cima da minha cama sem fazer ruído algum e instintivamente ergui a mão para acaricia-lo, percorrendo os dedos por todo o pelo macio, sentindo o gato ronronar e se esfregar ao meu corpo ainda coberto pelos lençóis. Quando minha mão se aproximou da sua cauda cheia e fofa, o gato virou de supetão e mordeu a minha mão.
- Ei! – o gato apenas me dirigiu um olhar satisfeito diante da minha indignação e desceu da cama, já se metamorfoseando.
- Você é muito apressadinho, Chase, ainda nem me levou pra jantar – disse Alex, com um sorriso divertido nos lábios. Corei ao perceber do que ele falava.
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Quinta-feira
Fiksi PenggemarTalvez eu devesse ter entendido o primeiro sinal do universo e ficado no conforto do meu quarto em Valhala, com o som acolhedor das árvores balançando, a brisa perfumada de louros e a grama fofa sob meus pés. Mas não, o ingênuo Magnus do passado não...