Quando se nasce caracol nunca se pode prever o destino.
Uns passeiam-se languidamente pelos campos de verde-primavera,outros pelos jardins-do-alheio e outros são caracóis-de-cidade, o que faz com que sobrevivam mais a custo já se vê.
Hélix era um caracol-de-província. Terra pequena, mas farta de jardins e de quintais que até dava gosto morder.
E foi bem no meio de um canteiro cercado de buxo que o nosso amigo nasceu.Ninguém sabe bem como, mas a verdade é que, um belo dia de sol, lá estava Hélix, pela primeira vez na sua vida, entre dois pequenos pés de jarros, a deitar os corninhos à brisa da manhã.
Espera-me uma bela vida, pensou Hélix,não deve haver nada como esta luz quente para me aquecer a casa.
Mas quando umas nuvens escuras foram entrando pela manhã e o ar ameaçou uns pinguiços de chuva, corninhos para dentro,que ele não era flor e não precisava de rega.
Dormiu todo esse dia. Pudera, não é a toda a hora que se nasce. Já muito fizera ele aventurando-se a espreita-o mundo.
E a vida de Hélix foi prosseguindo à volta disto: ora espreitava o sol, ora fugia da chuva. A sua única distração era a figura humana mais pequena lá de casa, duas tranças a escorrer pelos ombros, saia plissada,sapato de verniz acabado de estrear, que volta e meia parava à sua frente, aninhava-se à espera não se sabia de quê, e cantava uma lenga-lenga que, aos ouvidos de um caracol, soava assim:
Tu itica, tu incói,
Tem cóninhos como um bói,
Lagarato num é tu,
Fomiguinha tamém não.
Que bichinho será tu?
Eu sou um cacarói!
Verdade, verdadezinha, Hélix não achava piada nenhuma àquilo.Mas desde que aquela criatura minúscula não o incomodasse nem o calcasse, tudo bem, que cantasse o que lhe desse na real gana.
E como os caracóis não sabem o que são dias, nem meses, nem anos, o nosso amigo lá foi contando muitos sóis e muitas chuvas, que só ouvia de dentro da sua casota, muito encolhidinho.
Não era mundano nem se dava a conversas. Queria lá saber se as rosas tinham florido, se as ameixoeiras estavam carregadinhas de frutos vermelhos. Se os jarros onde morava tinham tido um destino fatal quando foram precisos para enfeitar uma sala lá de casa. Queria lá ele saber o nome dos pássaros que debicavam à sua volta e por todo o jardim, enchendo o ar com melodias que os ouvidos de Hélix não conseguiam descodificar. Queria lá ele saber.
Ele nascera só, pois só viveria. E aquele canteiro chegava esobejava. Conhecer mais mundo, para quê?
Mas o destino tem destas coisas. Numa bela tarde de Dezembro,quando Hélix se preparava para ver que tal estava o tempo do lado defora da sua mansão, viu cair do céu umas pérolas muito pequenas, dacor mais pura que ele alguma vez vira.
Eram leves como o esvoaçar das borboletas. Gelavam-lhe asantenas e permaneciam no chão, como que a querer chamá-lo.
Admirou-se. Nunca na sua longa vida tal fenômeno vira. Eextasiou-se de tal maneira, que se esqueceu de recolher os corninhos ede se fechar a sete chaves em sua guarita.
Como a vida é bela, pensava Hélix.
E os pensamentos iam fluindo cada vez com mais lentidão.
Que felizardo que eu sou. Pois estão aver que o céu veio visitar-me? Que asnuvens desceram das alturas só para mecumprimentar?
E sem dar por isso, enquanto olhava os cristais de água, comaqueles olhos que só os caracóis possuem, Hélix adormeceu, penetrouno sono mais doce que uma vida de nuvens pode dar... E nuncamais acordou.
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Roda de Leitura
Short StoryUm pequeno livro, criado como resultado de um Projeto de Extensão realizado por alunos do 7º período do curso de Pedagogia da Universidade Metodista de São Paulo (2020). Aqui buscamos escrever alguns contos e pequenos textos para que sejam lidos...