Euforia

43 4 0
                                    

Esse será o primeiro especial de 1950, o Quadro do Jeon.


JEON

Quando eu recebi a notícia da morte da Arabella, era madrugada ainda. Por mais confuso que pareça, aquela noite eu não havia dormido bem. Tive sonhos incompletos e que me soaram confusos, errôneos... Tudo parecia errado.
O relógio não fazia mais o "tic-tac" maldito de sempre. Vênus não se alimentou durante o dia, e tampouco dormiu a noite. A bichana passou a noite deitada na janela, observando a lua preencher o céu com seu glamour, sua grandiosidade.
Arabella não pensava assim.

Certa vez, em uma noite regada por absinto e segredos compartilhados, Arabella contou-me sobre a inconstância da Lua. Segundo a poetisa, havia certa solidão em brilhar tão belamente em um céu infinito, parecia tentador a ideia de ter um céu imenso apenas para si acompanhado por um punhado de estrelas que eram como jóias ressaltando a sua beleza pálida, mas Arabella achava solitário e frio. Parecia distante. As vezes, a menina parecia a Lua. Outrora sentia-se como tal. Espero que em sua próxima vida, se é que realmente existe uma continuação de nossa passagem pela Terra, ela não sinta-se como o satélite natural. Embora eu saiba que é bem provável que ela vá morar por lá, para fazer companhia e contar histórias para Ela. Típico do meu amor. Típico da minha alma gêmea.

Alma gêmea. Uma pessoa ligada a ti por andar consigo, por estar entrelaçada em teu peito de modo que nem sequer a morte irá os separar, mas pelo visto, separou. Ela não está mais aqui. Quiçá houvesse se despedido, talvez eu teria pintado sob tela a óleo uma última vez o seu sorriso. Ou apenas tenha ficado horas a fio decorando todos os detalhes daquele rosto tão jovial e significativo.

Ela parecia a obra de arte mais amada de um artista. Daquelas que se leva anos para pintar e do qual o resto do mundo se pergunta "Mas, o que é que ele viu nela? Por quê a tinta parece dançar no papel? Serão rabiscos? Serão histórias? Parece um beijo com asas." Era tudo isso que ela era. Uma imensidão de rabiscos se encontrando e desenhando um mapa em sua pele. Eu fotografei a constelação formada por todos os trópicos e fases de Arabella. Ela se tornou luz em minha parede colorida.

Martina me abraçou forte e segurou meu corpo, para que eu não desmoronasse no chão, e naquele momento entendi o significado de pilar, ela era minha estrutura sólida, impossibilitando minha queda. Diferente de mim e Arabella. Éramos contrários. Ninguém sustentava um ao outro. A gente caía juntos. Íamos a ruína. Colisão com asteroides, e depois ascenção. Dia após dia avançavamos, caminhamos um novo passo gigante para um salto na lua. Acho que o amor com ela fazia questão de ser diferente. Tudo fazia. A menina parecia viver as avessas, e eu adorava estar de cabeça para baixo com ela. Por ela.

Um pequeno detalhe que talvez passe despercebido a ti leitor, ou talvez te surpreenda e faça você se questionar sobre nossa relação, mas a verdade é que Arabella foi a primeira pessoa que eu fiz amor.

Eu já havia transado com algumas mulheres, também beijei alguns caras, vivi um pouco de tudo, minhas mãos habilidosas conheceram tantas curvas que eu poderia construir avenidas apenas com os moldes que tive. Mas, Arabella, foi a primeira pessoa que ressignificou o contexto do sexo. Fazer sexo com ela não era nada parecido com o ato carnal comum. Era extraordinário. Ela não tirava apenas a roupa, ela despia a alma. Era fascinante ver suas máscaras caindo sob o chão. Eu toquei seus seios e os beijava com tanta devoção porque embaixo deles, havia um planeta gigantesco que até então eu nem sabia existir vida. Ela olhava dentro dos meus olhos enquanto sussurrava poesias, era um vale de deuses e monstros, e eu jurava estar fodendo com um anjo*. 

Eu enrolava minha língua com a dela, tocava suas nádegas, apertava, sentia os músculos pulsando em minhas mãos. A sua tez se arrepiava com o contato. Era uma dança de chamas. Tudo parecia azul, laranja e cor de rosa. Acho que o último era a fase feliz de Picasso, acho que essa representava o amor.

Ou o amor era ela?

Havia intensidade em cada ato. Arabella era uma mulher infinita. Era prazeroso ser tocado por ela, ser respeitado, ser amado, mas não era desejo, era uma espécie de brasa que consumia nossos ossos e nos fazia deitar em sua cama e tornar aquele momento uma bagunça de corpos. Seus fios de cabelos entre meus dedos conforme eu ia mais fundo. Viajamos até Marte e paramos para apreciar Netuno em uma de nossas explosões. E foram uma, duas, três vezes. Ela era incansável. Éramos jovens inconsequentes.

De todos os segredos que compartilhamos, esse foi o mais secreto e o mais doloroso. Ambos sabíamos que para nós não havia saideira. Era a primeira garrafa de licor que eu virava em sua derme, mas também era a última.

O que nos restou foi mais do que uma ressaca e uma forte dor de cabeça. Eu fui curado. Sua alma abraçou a minha tão fortemente que aquela noite eu precisava de afeto, e somente minha alma gêmea poderia me proporcionar tamanha ingenuidade em toques carnais. Éramos melhores amigos, e nem mesmo em uma transa, nos tornou amantes.

E isso era o correto. Era o bom. O viável. O lúcido.

Abri o pote de tinta azul e jorrei inteiro no papel. Era o que ela dizia. Azul é a cor da melancolia, e nesse exato momento eu só pensava na dor de não tê-la comigo.

Pensei nas idas ao parque de diversões e em todas as vezes que nos sentimos invencíveis na roda gigante. Éramos imensos e o mundo parecia tão pequeno visto de cima. A tinta laranja fez companhia ao tom de azul, pois aquela memória era calorosa.

Relembrei as vezes em que dançamos ao som de Rock n' Roll. Minha jaqueta preta de couro presenciou todas as voltas de seu corpo na pista de dança. Ela era a rainha da beleza. O cor-de-rosa parecia o certo a ser a próxima coloração, pois aquela lembrança era sobre a paixão.

As manhãs ouvindo Janes Joplin na rádio enquanto escrevia mais uma história. Conduzia mais um livro. Era uma mulher sábia que respirava a arte da escrita. Seu dom era a fase amarela.

Sua bravura e coragem a levaram para lutar contra a guerra, para ajudar os enfermos e tornar o mundo o lugar um tanto menos insano e ganancioso. Ela não havia vendido a batalha contra os homens contaminados pelo ódio, mas havia espalhado verdade e doçura em cada coração que ficou. Ela era o verde da esperança.

Seu amor por Vênus era singelo e puro em demasia para ser comparado a qualquer fator externo. Havia brilho nos olhos e a sensação de ter um lar, e também ser abrigo. Era a paz. Era o branco.

O coração que lhe amou e também roubou, pertencia a Min Yoongi. Ela também havia entregado o seu para ele. Amantes da arte e espíritos livres. Não havia como dar certo, mas isso nunca fez com que as coisas dessem errados. Eles eram a poesia que acompanhava seus dias. Esse era o vermelho. Intensidade e amor.

O quadro era uma bagunça de cores, era o arco-íris bruto, um diamante não lapidado. A colorimetria reverberava a história de uma vida. Sonhos que tornaram-se pó. Ela foi encontrar morada nas estrelas.

A arrebatação e entusiasmo da tela parecia ser ela em vida e morte.

Euforia.

Assinarei meu último quadro para seu coração de chuva como Euforia.  No papel tingido pela coloração das cores quentes e frias, havia uma poesia ocultada transformando-a em todos os segmentos artísticos. Minha garota linda, minha melhor amiga, minha alma gêmea, e minha luz, era a minha última arte. Ela era pura Euforia. Espero que seus olhos dolorosos estejam olhando para o mesmo lugar que eu. Meu eterno amor utópico. Minha menina.

A causa de minha Euforia.



* Passagem de Gods & Monsters da Lana Del Rey

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: May 27, 2020 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

1950Onde histórias criam vida. Descubra agora