Capítulo 3

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Passei no vestibular para o curso de Letras com o futuro profissional traçado em detalhes: focaria meu interesse nas disciplinas curriculares e extracurriculares relacionadas à literatura, faria quantos cursos fosse possível na faculdade de editoração da universidade, iniciaria minha carreira como revisora de textos e, em poucos anos, abriria uma pequena editora. Nos três primeiros anos da faculdade, eu tinha tudo sob controle. Fiz cursos de literatura russa, literatura infantil, literatura francesa, fundamentos da editoração e literatura clássica grega. E era bolsista em um projeto para digitalizar livros na faculdade de Editoração. Conseguia visualizar uma casinha, alugada, decorada com estantes de livros, que serviria para iniciar meu negócio no ramo editorial. Começaria editando livros sob demanda. Então, aos poucos, minha editora ganharia espaço no mercado e eu teria a possibilidade de bancar escritores inéditos. Com o tempo, ampliaria o catálogo. O céu era o limite.

Meu mundo perfeito foi estilhaçado pelo ônibus que atropelou e matou meu pai. Apenas um mês após sua morte, eu abandonei o projeto de digitalização, quase tranquei a faculdade e joguei meu sonho de ser editora para o fundo do meu subconsciente. Vó Helena e a necessidade urgente de um diploma foram os únicos motivos por que eu não desisti de toda minha vida em prol de qualquer tipo de emprego que pagasse bem. Parei de olhar os anúncios que ofereciam estágios para revisora de textos e mergulhei nas vagas de secretária executiva. Segui o conselho de uma colega da faculdade que uma vez, ao ser questionada sobre sua escolha profissional, respondeu: "Se você não pretende dar aulas, não quer trabalhar na área de pesquisa ou editorial, seja secretária."

Peguei o curso de inglês, que meu pai pagou por anos, os talentos com redação, os conhecimentos de informática e o senso de organização exacerbado, coloquei tudo em um currículo e saí batendo de site em site, até encontrar em algum deles uma empresa que acreditasse em meu novo sonho de infância: ser secretária.

Encontrei a empresa que apostou em meus talentos para o secretariado executivo três meses depois. Por sorte! Minha mãe já estava arrancando meus cabelos por causa das dívidas que não poderiam ser saldadas com apenas a pensão de um salário mínimo de meu pai e também porque meu irmão seria obrigado a abandonar o que o mantinha saudável: a musicoterapia. Para complicar as coisas, Alan voltou a ter crises de epilepsia. Fazia meses que ele não era acometido por convulsões. O neurologista trocou o remédio. O novo era bem mais caro. Saldar as dívidas do apartamento, pagar as sessões de musicoterapia de Alan e, ainda, os remédios, era missão impossível com um salário mínimo (ou dois, caso eu continuasse no projeto de editoração). Quanto ao salário de minha mãe, meu pai deu-lhe um péssimo costume. Não a deixava pagar nada em casa. Ele dizia que podia muito bem prover todo o sustento de que precisávamos. À minha mãe, cabia gastar o próprio salário como quisesse. Era louco pela esposa. Fazia-lhe todos os caprichos, e outros mais. Assim, logo que ele morreu, ela defendeu que o ganho como funcionária pública mal pagava o condomínio e a conta de luz.

No dia em que recebi a ligação da moça dos recursos humanos, responsável pela entrevista e os testes psicológicos, na Ramalho Consultoria, e ela informou que eu estava aprovada, minha mãe encontrou o substituto de meu pai. Eu. Foi para mim que ela transferiu o peso das dívidas, do orçamento doméstico e da saúde de Alan. Fui de filha bancada a chefe da família. Meus sonhos foram trocados pela sobrevivência diária.

Conheci seu Nilton Ramalho no elevador. Eu estava subindo para o andar onde se localizava a empresa a fim de enfrentar o primeiro dia de trabalho. A primeira impressão que tive dele não foi das melhores. Lembro-me de ter pensado que o homem deveria ser esquizofrênico. Resmungava diante do espelho enquanto arrumava a gravata, falando sobre uma esposa golpista e seus cachorros sem classe. Só depois soube que fui admitida, como sua secretária, na mesma semana em que a esposa o abandonou. Fomos apresentados pela moça dos recursos humanos, Célia. Ele mal olhou em minha cara. Estendeu a mão e duas dúzias de contratos para eu arquivar. Fiquei perdida. Eu mal sabia onde ficava minha mesa, naquele momento, o que poderia dizer do armário de arquivos da empresa? Tentei argumentar sobre isso. Ele não me deu atenção. Minto. Voltou a falar para me pedir cappuccino do Paulista's — um famoso café, que ficava próximo ao prédio. Entendi instantaneamente qual era o carma da minha vida: atender às expectativas de todo mundo, menos às minhas.

A missão de Anabel (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora