Ufa! Consegui colocar a penteadeira na caixa ao lado de meus pés. Quero dizer, os enfeites, os perfumes e as bijuterias. Agora posso encarar o guarda-roupa. E seus inúmeros novelos de lã. Outra mania de vó Helena. Ela não se contentava em comprar suas lãs à medida que um trabalho era encomendado ou que fazia algo para presentear. Comprava por comprar. Comprava apenas pelo prazer de tê-las por perto, senti-las, cheirá-las. Assim como os livros e eu. Talvez um pouco pior, pois não posso ter tantos livros quanto minha avó tem novelos de lã. Simplesmente não tenho onde enfiar. Não cabem em meu quarto 2x2m. Fui obrigada a mudar meu hábito de leitora compulsiva. De compradora de livros físicos a compradora de e-books. Devo isso à minha querida mãe que resolveu substituir a estante da sala por um painel fashion para colocar a maxi-ultra-TV de LCD.
Abro a primeira porta do guarda-roupa. O cheiro de naftalina me dá boas-vindas. Isso é totalmente minha avó. Sempre armada contra as traças. Mas bem que o "perfume" que esse negócio solta poderia ser um pouco melhor. Este odor me remete à roupa velha numa casa abandonada. Nunca me acostumei a ele.
Escancaro a outra parte. Lá estão os bons e companheiros novelos de lã. São beges, pretos, lilases, azuis, brancos. E algumas outras cores que não sei identificar muito bem. Não que eu seja daltônica. É apenas porque meu guarda-roupa tem tão pouca variação de cores que acabo tendo dificuldade de lembrar o nome daquelas que nunca estiveram nele.
Coloco a outra caixa ao meu lado e começo a arremessar os novelos dentro. Depois tia Amora pode separar os novelos que preferir para investir em sua profissão de "tricoteira". Não farei caso. Está aí algo para o que não tenho nem o mais remoto talento. Nem em vidas passadas, estou certa. O artesanato. Tentei algumas vezes. Na verdade, duas. Fui do ponto cruz a bonequinho de biscuit, fazendo trabalhos que só uma pessoa de muita boa vontade poderia compreender minha intenção inicial: bordar uma maçã e moldar um cachorrinho. Ninguém teve boa vontade suficiente. Incluindo minha avó. Conclusão: joguei a maçã com cara de pera e o cachorro com cara de boneco de neve no lixo. E nunca mais me meti a fazer o que não nasci para fazer. Simples assim.
Até que não eram tantos novelos. A prateleira já está vazia. Resta-me pegar as roupas das gavetas. Vó Helena não tinha muita roupa. Ela nunca ligou para moda. Outra razão para eu achar que puxei a ela. Eu tampouco me ligo em moda. Procuro, claro, me vestir de acordo com minhas funções na empresa. Tenho minhas saias, calças e vestidos sociais. E as blusas clássicas de botão. Quanto ao resto das roupas, sobram apenas as calças leggings (amo!), batas e a única calça jeans. Se não fosse porque ganhei de minha avó e, portanto, tenho um carinho tão especial, eu não estaria usando agora a blusa "nem sei como passou pela cabeça". Tenho consciência de que não tenho um corpo perfeito como de Júlia. Não sou nada alta. Ao contrário. Seria um sonho que viraria realidade ter passado de 1,60m. Tampouco tenho longas pernas (pobre das minhas — são curtas e gordinhas!). E, muito menos, tenho o quadril e a cintura proporcionais. Na real, sinto como se eu tivesse a cintura da Barbie e o quadril da Mulher Melancia. Quem dera fosse o oposto. Eu partiria para uma lipoescultura (como se eu tivesse coragem...) e tudo estaria resolvido.
A última peça acaba de entrar na caixa. Tudo super, mega dobrado porque essa sou eu. Meu toc não me permite jogar roupas sem dobrar. Não importa onde.
Pulo a parte do guarda-roupa que foi de meu avô. Tudo foi esvaziado de lá faz muitos anos. Eu era adolescente quando ele morreu, de um infarto fulminante. E inesperado. Não tão inesperado assim, na verdade. Ele fumava como uma chaminé. Além de comer mais petiscos calóricos do que arroz e feijão. Eram vícios que ele preferiu levar para o caixão a abandonar. Vó Helena não se abalou muito. Para ser sincera, apesar de eu ter ainda 15 anos na época, acho que ela não se abalou nada. Nem chorou. Pelo menos, eu não presenciei. Ficou o tempo todo olhando o caixão serenamente. Quem mais sofreu foi meu tio Raul. Ele era muito apegado ao meu avô. E eu compreendia bem por quê. Tio Raul foi o companheiro de jogatinas de vô Getúlio. Sinto-me envergonhada de expor essa faceta da família. Mas é real. Meu avô dilapidou cada centavo da herança milionária, que recebeu após a morte do pai, nas mesas de jogos. E levou tio Raul com ele. Nunca entendi muito bem por que vó Helena não caiu fora ao perceber o vício do marido em jogos (vício deveria ter sido o nome do meio dele, aliás!). Ou poderia, pelo menos, ter peitado vô Getúlio; antes que ele deixasse a mulher e os filhos quase na miséria. Em relação a esse assunto, achava minha avó muito passiva. Nunca reclamava. Nunca brigava. Aceitava tudo como uma mulher que devia obediência cega ao marido. Sem questionar. Exatamente assim.
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A missão de Anabel (DEGUSTAÇÃO)
ChickLitUma carta a conduziu à jornada mais transformadora de sua vida... e ao encontro do amor. Anabel desistiu de todos os seus sonhos quando o pai morreu há cinco anos. Na mesma época em que ela foi obrigada a assumir o posto de chefe da família e decidi...