Empanturrei-me de bolo. Prometi a mim mesma que cortaria uma generosa fatia, comeria bem devagar, assim ela acabaria ao mesmo tempo que meu apetite, e recolocaria a travessa na geladeira sem olhar para trás. Foi tudo bem até devolver o bolo a seu lugar. O erro foi olhá-lo de novo, checando se estava seguro. Em meio milésimo de segundo, peguei outro pedaço e engoli sem pensar. Além de meu estômago chegar reclamando à casa de vó Helena, terei, à noite, que fazer três horas de esteira.
Bato a porta do carro. Recrimino-me, mentalmente. Já perdi as contas das vezes em que me disse que não dirijo uma geladeira, sim, um Gol. Devo ter a mão pesada. E sou a única motorista que faz isso com o próprio carro.
Paro em frente a casa onde possivelmente entrarei pela última vez. Está tudo como vó Helena deixou há um mês, quando foi internada nos últimos estágios da doença. O portão branco, com a pintura descascada, ainda é baixo, convidando a uma xícara de café. O muro, que percorre cinco metros da calçada, traduz a personalidade da ex-moradora: não espanta ninguém com cercas elétricas ou cacos de vidros. Ao contrário, sugere uma conversa ao entardecer. O jardim em frente à janela do quarto também é o mesmo onde meus primos e eu rolávamos entre risos e gritos de pais impacientes. A única mudança é o capim alto recobrindo as flores que ali vicejavam.
Tenho vontade de ficar, parada, assistindo à infância alegre que tive passar diante de meus olhos. Nos momentos em que me esquecia de verificar se Alan estava bem ou se precisava de alguma coisa, eu fui feliz. Muito! Fui uma menina hiperativa que largava as Barbies para se entreter com os brinquedos de meus primos Ricardo e Rafael. Ou estava na companhia de minha avó. Lembro-me das largas tardes de sábado em que eu sentava ao pé de vó Helena, a cabeça encostada em suas pernas, ouvindo as ágeis mãos dar vida a cachecóis, blusas, casacos, colchas, toalhas de mesa. E tantas outras peças que ela fazia com o coração transbordando de inspiração e amor.
Fecho os olhos para obrigar as lágrimas correrem por meu rosto. Se fosse possível medir a saudade do que vivi nesta casa, estou certa, ela só caberia no espaço do infinito. Onde estão também as memórias ao lado de meu pai. E encerram os melhores anos de minha vida. Anos que evito lembrar para não fazer qualquer tipo de comparação com o que vivo atualmente.
Passo a mão pelo rosto e elimino os traços do choro. Respiro profundamente. Toco no portão, sem o cadeado, e o abro. Do interior da casa, toda pintada de rosa bebê, dona de dois quartos, sala, banheiro e cozinha, eu ouço vozes competindo para ver qual se sobressairá. Desejo dar meia volta, correr para o carro estacionado do outro lado da rua, dirigir até em casa e atacar o resto do bolo, escondido na gaveta de verduras da geladeira.
Quando acredito estar levando a cabo meu desejo, pois me virei de frente para a rua, a voz de dona Haidê alcança meus ouvidos, estridente.
— Ah, resolveu aparecer! Pensei que você fosse deixar sua tia e eu fazendo tudo sozinhas! Você demorou tanto que o corretor já veio, avaliou a casa e já foi embora.
— E, aí, conseguiram um bom preço? — pergunto, sem a mínima vontade de mergulhar num novo embate com minha mãe. Respeitarei as boas lembranças que me trazem o lar de minha infância.
— Não gostei do jeito do corretor. Acho que pretende nos aplicar um golpe. Disse que deveríamos colocar a casa para alugar por um tempo e esperar a valorização do imóvel, com a construção de uma estação de metrô que o governo prometeu para daqui a quatro anos! Essa é boa! Ele quer é faturar com comissão de aluguel às nossas custas.
— Deve ser isso. — Passo por ela, sem me importar com nada do que está falando.
Piso na sala. Então, a energia mais forte que me lembro de um dia ter sentido invade-me inteira. Não é o pressentimento contraditório do dia anterior. Ou a sensação ruim da manhã. É algo que eu não posso classificar. Simplesmente está se espalhando, rápido, em meu interior, conectando-se de célula em célula, me dando a impressão de que estou perdendo o poder sobre mim. E, surpreendentemente, eu não sinto necessidade de buscar explicações. Tampouco me sinto mal por perder o controle. Ao contrário, sinto-me impelida a entregar meus pensamentos e minhas emoções nas mãos "disso".
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A missão de Anabel (DEGUSTAÇÃO)
Chick-LitUma carta a conduziu à jornada mais transformadora de sua vida... e ao encontro do amor. Anabel desistiu de todos os seus sonhos quando o pai morreu há cinco anos. Na mesma época em que ela foi obrigada a assumir o posto de chefe da família e decidi...