I - Marek

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Quando entrei no banheiro com meus sapatos floridos e de saltos barulhentos, observei minha figura no espelho - cabelos escuros e cheios espalhados sobre um longo casaco cinzento de lã - e senti que algo estava prestes a acontecer. Estivera ansiosa e distraída por semanas e sentia que o que me perturbava iria finalmente acontecer. Mas, em vez de ficar mais nervosa, eu estava tranquila.

E é sempre assim comigo: eu costumo ficar inquieta por dias, às vezes semanas, e então, de repente, tudo desaparece. E posso dizer com precisão o momento em que minha aflição termina, porque eu começo a me sentir segura e à vontade, e desta vez o instante final foi quando eu entrei no banheiro do shopping.

Assim, como em todas as outras vezes, meu sexto sentido estava enganado e nada ocorreu. Logo depois, peguei o meu carro no estacionamento e saí do shopping normalmente. Uma chuva leve caía suavemente e eu não estava muito longe de casa quando fiz uma curva um pouco mais rápido do que deveria.

O carro derrapou na rua de paralelepípedos, mas de alguma forma eu sabia que seria capaz de controlá-lo e o fiz. Talvez o normal fosse ficar apreensiva com isso, mas não fiquei. A minha paz de espírito estava de volta e até que meus problemas de ansiedade voltassem - e eles voltariam em breve pois nunca ficaram longe por mais de três ou quatro meses - poucas coisas na Terra poderiam realmente me incomodar.

Sem delongas cheguei em casa e saí do carro para abrir o portão. Olhei para as janelas da frente e conclui que meus pais já deviam estar dormindo já que não pude enxergar nenhuma luz acesa. Eu não me orgulhava disso, mas durante minhas crises de ansiedade eu os invejava muito por conseguirem ter boas noites de sono.

Nas últimas semanas, dormir fora quase impossível e nas poucas vezes em que aconteceu eu simplesmente havia desabado esgotada em um sono agitado e sem sonhos. Mas agora que minha inquietação havia passado, eu provavelmente apagaria imediatamente ao chegar a minha cama e num sono tão profundo que eu mal me lembraria de sequer ter me deitado.

De qualquer forma, agora que eu tenho vinte e três anos, eu posso me distrair alegremente na internet durante as minhas longas noites de insônia, mas quando eu era uma adolescente com notas ruins meus pais costumavam tornar as coisas bem mais difíceis. E este é um item no topo na minha lista de "Coisas boas sobre ficar velho".

Voltei ao carro e quando segurei a maçaneta, ouvi uma voz sussurrando meu nome na minha cabeça. E isso era algo novo, mesmo para mim. Fui meio louca por toda a minha vida, mas nunca ouvira vozes antes. Não sóbria, pelo menos.

- Sofia! - a voz masculina repetiu e desta vez eu tinha certeza de que não era algo da minha cabeça - Eu preciso que você me chame. Basta dizer o meu nome, por favor.

- Mas eu não ... - comecei a frase mas percebi que de alguma forma eu sabia qual era o nome que eu devia chamar - Marek. - disse eu e estendi minha mão esquerda à frente com a palma voltada para cima, esperando por ele, como se isso já houvesse acontecido antes.

No momento seguinte, ele estava diante de mim, com sua mão sobre a minha. Ele era muito mais alto do que eu, seu cabelo era curto e claro e seus olhos, cercados por profundas olheiras, eram de um verde escuro e acinzentado, assim como o oceano depois de uma tempestade - onde eu moro, o oceano geralmente é verde esmeralda. No geral, ele parecia exausto e machucado.

Mas, infelizmente, ele não foi o único convidado que apareceu na minha calçada. Estávamos cercados por enormes criaturas humanoides envoltas em mantos pretos. E eles eram ainda maiores do que Marek, o qual eu mentalmente já colocara na minha lista de 'Homens muito altos' - sim, eu tenho listas para quase tudo e meu psiquiatra está ciente disto.

De qualquer forma, as oito coisas ao redor do meu carro estavam completamente cobertas por capas negras e eu podia reconhecer suas cabeças, ombros e braços sob o tecido escuro, contudo de alguma forma eu sabia que não eram pessoas.

- Assim como você me chamou, mande-os embora. - disse Marek calmamente, ainda segurando minha mão.

Virei a cabeça para ele e o encarei por um tempo. Novamente, quando eu estava prestes a dizer que não sabia como fazer isso, percebi o que eu deveria fazer. Então apertei meus olhos e sussurrei:

- Vão embora.

E quando os reabri, as criaturas haviam desaparecido.

- Agora devemos nos mexer, apenas para ter certeza de que eles não voltarão.

- O que?

- Basta entrar no carro e dirigir, por favor.

Nós entramos no carro e colocamos nossos cintos de segurança.

- Então, quem é você e por que parece que já fizemos tudo isso antes? - perguntei enquanto nos afastávamos da minha casa.

- Eu sou seu guardião. E já fizemos isso antes, inclusive já tivemos essa conversa inútil.

- Meu guardião? O que diabos isso quer dizer? E por que não me lembro de nada disso?

- Bem, eu sou seu guardião porque eu deveria mantê-la segura e neste universo. E você não se lembra desta conversa, porque ela não deveria acontecer. Você nunca deveria me ver e a sua memória é apagada toda vez que isso acontece.

- Está ficando cada vez melhor. Por que eu não deveria te ver?

- Essa é a regra, um Yuiitsumuhi nunca deve estar ciente da existência do seu guardião.

- Um o que?

- Yui-itsu-mu-hi. - disse ele articulando cada sílaba clara e vagarosamente - Significa único, sem paralelos em japonês.

Pendi minha cabeça para a direita como um cachorro confuso e então o olhei de soslaio antes de perguntar:

- Mas o que é exatamente um Yui-isu-muti, em poucas palavras?

- Digamos que existam vários universos paralelos e cada pessoa tem pelo menos um par em algum outro universo, mas não você. Você é única. Há apenas uma de você em todos os universos e isso a torna extremamente poderosa. Todos somos feitos de energia e a mesma quantidade de energia que está dividida entre eu e os meus pares em outros universos está concentrada em você.

Antes que eu pudesse digerir o que ele dissera, vi uma sombra escura se espalhar pela rua na nossa frente. Desacelerei o carro e percebi que era uma onda de criaturas cobertas por mantos escuros exatamente como as que eu vira na frente da minha casa.

- E agora? - perguntei calmamente, a presença de Marek tinha um estranho efeito tranquilizador em mim.

- Nunca vi tantos deles antes.

- Que ótimo!

Engatei a ré e Marek tirou uma arma muito esquisita de algum bolso interno de sua jaqueta e a carregou.

- Você precisará ir mais rápido do que isso. - disse ele enquanto abria a janela.

Eu apertei meus olhos aceitando o desafio e guinei o volante bruscamente para a direita. O carro girou, eu troquei a marcha rapidamente e pisei no acelerador como se minha vida dependesse disso - e provavelmente dependia mesmo.

Eu estava bastante certa de que havia deixado nossos perseguidores para trás e por isto prestes a me gabar quando algo aterrissou pesadamente sobre o capô do meu carro. Eu não pude ver o que nos atingiu, mas a sensação era exatamente a mesma de bater contra uma árvore - sim, eu já fiz isso antes - paramos abruptamente e meu cinto de segurança impediu dolorosamente que eu me chocasse contra o volante.

Depois disso, tudo ficou nebuloso e a próxima coisa que eu me lembro é do som estridente de uma sirene ao longe. Abri meus olhos assustada e me sentei num pulo. Demorou um instante para eu me acostumar com a escuridão, mas logo reconheci onde estava, eu conhecia muito bem aquelas paredes ao meu redor.

Sentada na minha cama, olhei para baixo e vi que estava de pijama. Virei a cabeça para a esquerda e no meu criado-mudo avistei a chave do meu carro. Cocei meu cabelo confusa e apalpei a cama ao meu redor procurando pelo meu celular.

- Deixa eu ver se a tal palavra em japonês existe. Era Yui-isu-muti?

O brilho da tela do celular incomodou meus olhos por um instante e em seguida a primeira coisa que eu vi foi o relógio e a data em grandes letras brancas - onze e meia da noite de domingo. Eu deveria simplesmente me deitar novamente, mas a curiosidade me impediria de dormir, então pesquisei algumas variações das sílabas que eu me lembrava. Como não encontrei nada, agora sim eu poderia adormecer tranquila.

YuiitsumuhiOnde histórias criam vida. Descubra agora