No ônibus

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Eu estava aconchegada na poltrona da janela e o balanço do ônibus me embalava de maneira agradável. Ao meu redor os sons familiares de uma viagem rodoviária me cercavam: embalagens plásticas sendo abertas, salgadinhos sendo mastigados e passageiros conversando uns com os outros.

Uma mulher que parecia estar no fundo do ônibus contava, não muito discretamente, que estava indo fazer um curso de culinária porque acabara de se divorciar. Num tom bem mais baixo que o dela, uma voz masculina assentia com interjeições monossilábicas e parecia encorajá-la a continuar falando enquanto ela divagava sobre querer mudar de vida.

Ainda que ela estivesse falando um pouco alto, eu sabia que isso não me impediria de dormir mais um pouco, contudo algo além da voz arrastada da desconhecida me perturbava. Percebi então que eu não sabia para onde estava indo e nem me lembrava de ter entrado naquele ônibus. Inicialmente achei que fosse apenas uma confusão mental momentânea por eu ainda não ter acordado completamente, mas se fosse este o caso eu já deveria ter começado a me recordar de alguma coisa.

Abri meus olhos e vi a estrada pela janela. Não reconheci prontamente o lugar, então me virei para o interior do ônibus e avistei o passageiro ao meu lado. Seu rosto era muito familiar, mas eu não conseguia me lembrar de onde conhecia aquele rapaz de cabelos castanhos e olhos verdes levemente acinzentados.

- Marek? - murmurei, sem muita confiança, o nome simplesmente brotara na minha mente.

- Oi, Sofia!

- Por que eu estou neste ônibus?

- Porque você estava inconsciente e havia um punhado de híbridos cercando a sua casa. - respondeu ele como se falasse da coisa mais comum do mundo.

- Como?

- Você se lembra que o meu irmão nos sequestrou?

Franzi o cenho e sacudi a cabeça de um lado para o outro negativamente.

- Ele nos levou até a Resistência para tentar recrutar você para lutar com eles contra o Conselho. Soa familiar?

- Muito, muito vagamente.

- Do que você se lembra?

Esfreguei meus olhos demoradamente e passei a mão pelos meus cabelos:

- Parecem memórias de uma bebedeira. Flashes desconexos e sem sentido que eu não tenho bem certeza se aconteceram ou não. Tinha uns seres assustadores em mantos negros...

- Esses são os híbridos, sempre tem alguns atrás de você. E é o meu trabalho protege-la deles, mas como da última vez eu não consegui e dois deles que pertenciam ao meu irmão nos levaram até a Resistência, achei mais seguro que nos mantivéssemos em movimento.

- Tenho uma vaga recordação de você me falando sobre esses caras. E havia algo sobre dispositivos. Se fossemos capturados eles deveriam nos matar...

- Deveriam. Mas meu irmão provavelmente conseguiu desativar o monitoramento ou teríamos morrido no momento em que nos levaram para a Resistência.

- Você estava sangrando com um corte na cabeça. - murmurei ao mesmo tempo em que olhei para a testa dele e encontrei um curativo logo acima da linha do seu cabelo.

- Não foi nada demais.

- Eu ainda estou completamente perdida. Por que eu não consigo me lembrar?

- É culpa do seu dispositivo intracraniano. Ele afeta as suas memórias. Você não deveria saber da existência de nada que não pertença a esse universo em que você está, então seu dispositivo vai continuamente tentar apagar ou embaralhar suas recordações das coisas que você deveria ignorar. Aparentemente meu irmão conseguiu bloquear apenas o monitoramento dos dispositivos e não a parte que interfere na sua memória.

YuiitsumuhiOnde histórias criam vida. Descubra agora