Davi Medeiros

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Tarde prenunciada 

De todos os cafés, aquele era o meu. Ficava entre uma loja de suplementos e um pesadoprédio comercial. Fazia frente com a leveza. Era um ambiente amendoado, morno, ondetodas as vozes falavam em harmonia. Oferecia muitas possibilidades de sorte, o que tornavadivertido o plano da visita: encontrar o sofá vazio, chegar durante a parte boa de um disco —havia muitos. E livros, também, para que se escolhesse o que melhor combinasse com oaroma do café, com a cara do dia. Era lugar de se esquecer do mundo. 

Em muitas ocasiões eu o havia frequentado na companhia de outros entusiastas da poesia.Desta vez, como em tantas outras, fui sozinho, em segredo, pela diversão. Antes, passeinuma livraria para comprar um livro que compusesse o sentimento, tamanha era minhavontade. Já tinha em mente o que iria comer e beber. Previa a expressão da garçonetequando avistasse o cliente antigo. 

Quando cheguei, duas meninas conversavam aos berros no sofá. Me encaminhei aosfundos do estabelecimento, onde sempre me sentava quando desacompanhado. Lá, a luzde fora quase não alcançava, e, assim, eu me escondia de quem passasse na rua. Mas quedecepção, o cardápio não era o mesmo. O que eu havia planejado comer já não se comiaali. De um notebook ao lado do caixa, saía uma música agitada, corrida, quase como umesporro. 

Considerei ir a outro café — aquele já não era tão meu. Mas, desde sempre, sou desegundas e terceiras chances. Não cancelo planos com facilidade, eles são os pilares dosmeus dias. Após alguns minutos sem atendimento foi que notei num canto do cardápio:agora, era preciso fazer o pedido no caixa. Já sentindo que o poema estava perdido, fui atéa nova proprietária e ordenei o que queria. 

Ela era pessoa tímida, cabisbaixa. Quando falou, notei que não tinha dentes. Sua voz saíaincerta, bem baixinho, e de súbito fez com que eu me sentisse mais alto, o que meincomodou. A moral, a bondade, estas coisas se atrasam em relação à crueldade primeira,antes mesmo da lembrança de Deus. Eu estava, então, vencido. O café, agora, era lugar deescancarar o mundo, não mais de se fugir. 

Tentando me apoiar ao último elemento que me coubera prenunciar, o livro, segui com atarde. Neste aspecto, tudo deliciosamente normal: Drummond dos contos era o mesmo dapoesia, e eu estava tão aconchegadamente incrustado em Minas Gerais. Mas a música altanão me permitia visualizar Itabira, nem Joel, Miguel ou os outros personagens. Os temposde café estavam acabados, era melhor que eu procurasse outro local para meus rituais ouque apenas desistisse. 

Mas entrou uma moradora de rua no estabelecimento. Quase sem roupa, gorfando palavrassoltas, embriagadas. Apontou para a vitrine de doces. A proprietária saiu detrás do caixa ese dirigiu até ela. Não, que não a expulsasse; eu, tão egoísta, não aguentaria. 

— O que você quer? 

— Quanto é o brigadeiro? 

Ela não poderia pagar. 

— Mas leve mesmo assim — disse docemente a dona —, e que Deus te abençoe. 

Senti amor. Profundo e quente. E culpa. Eu ainda não era tão bom quanto gostaria,mas, olhando para aquela mulher, encontrei mais uma referência para seguir. Afinal, alémde boa, o que uma pessoa humana precisa ser?

Escritor SolidárioOnde histórias criam vida. Descubra agora