Isabel Travancas

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JORNALISTA COMO PERSONAGEM DE CINEMA

A indústria cultural e particularmente o cinema são um campo privilegiado de produçõessimbólicas e mitos modernos. A chamada "Sétima Arte" tem lugar de destaque na modernidade.O século XX e o cinema nasceram quase juntos e, sem dúvida, o segundo registrou e expressoucom cores, som e imagem muito do que se viveu e pensou nestes cem anos. O cinema com seuenorme poder de penetração nos mais diversos grupos sociais ajudou a construir mitos, a divulgarsaberes novos, como a psicanálise e a popularizar atividades e profissionais, como foi o caso daimprensa e dos jornalistas. A linguagem cinematográfica transmitiu o impacto dastransformações sofridas neste século. O clássico Tempos Modernos de Charles Chaplinapresenta com ironia os novos tempos, mais rápidos, mais urbanos, mais tecnológicos. 

E o jornalista foi e continua sendo protagonista e tema de diversas películas ao longo dahistória do cinema. É possível afirmar que o cinema colaborou com a construção de uma imagem, ou melhor, de algumas imagens do jornalista; representações que certamente influenciaram naescolha profissional de futuros repórteres. Quantas carreiras jornalísticas não devem ter nascidono "escurinho" de uma sala de cinema? Mas qual jornalista o cinema privilegiou em suasproduções? Herói e bandido estiveram presentes em diferentes filmes e períodos. O vilão érepresentado pelo profissional que não mede esforços para conseguir seus objetivos e dar um"furo" de reportagem. Sem caráter e trafegando pelo submundos do crime, ele não hesita emcolocar sua carreira na frente de tudo e todos. O herói identifica-se com os valores do mundopúblico e defende a verdade, a democracia, o bem comum. Nesse sentido pode-se dizer que ojornalista surge como o herói urbano do século XX. Não é à toa que Clark Kent, o Superhomem- é jornalista. E o herói do nosso tempo também é criado pelo cinema. Entendo aqui herói nostermos que Helal(1998:138) utiliza para discutir este papel na atualidade. Herói como "quemconseguiu, lutando, ultrapassar os limites possíveis das condições históricas e pessoias de umaforma extraordinária, contendo esta façanha uma necessária dose de 'redenção'e 'glória'de umpovo. Mas, para que sua trajetória heróica alcance este status, é necessário que as pessoasacreditem na verdade que as façanhas do herói afirmam." Todos os grupos sociais de algumaforma fabricam seus heróis. Em nossas sociedades modernas a indústria cultural é um lugar dedestaque nesta "fabricação". 

O jornalista é antes de tudo um habitante da cidade. O mundo urbano tem características eparticularidades que combinam e se misturam no jornalismo. Quando Simmel(1979) cita comocaracterísticas dos indivíduos da cidade superficialidade, anonimato, relações transitórias,sofisticação e racionalidade, é difícil não associá-las ao jornalista. Não que elas sejam exclusivasdesta carreira, mas nela se expressam com intensidade. E por isso é possível estabelecer umarelação tão íntima entre este profissional e a cidade como é mostrado nos filmes escolhidos. Acidade, mais intensamente a metrópole, como afirma Simmel, determina um novo modo de vida,novas relações sociais e ampliação das ocupações resultantes do desenvolvimento técnicoassociado ao transporte e à comunicação. Esta se modifica intensamente. Não há apenas novos ediferentes meios de comunicação, mas um processo que ocorre também, agora, a partir de meiosindiretos. Com o telefone, o jornal, a televisão e mais recentemente a internet o contato pessoalficou mais restrito. 

A vida urbana não se define apenas pela grande concentração populacional e variedade deatividades econômicas, mas pela complexidade e liberdade de circulação que possibilita assim como pela intensidade com que o tempo é vivido. A base da imprensa moderna é a notícia,produto comercializado no jornal-empresa e elaborado por profissional assalariado. E se a notíciapossui inúmeras definições diferentes, ela está sempre associada ao tempo e à questão do novo,da novidade. E é o tempo que transforma o novo em velho. Atrás e contra este tempo que passamais rápido na cidade, corre o jornalista. 

O relógio, como salienta Simmel, é um dos símbolos da ordem social no mundo urbano.Em inúmeros filmes sobre jornais e jornalistas ele é focalizado, seja o grande mostrador daredação ou o do pulso do repórter. Não há jornalista sem estreita relação com o tempo. Relaçãoesta que, como destaquei em minha dissertação(1983), influi na adesão deste profissional com oseu trabalho, dividindo sua vida em tempo do trabalho e do não-trabalho e gerando uma visão demundo e um estilo de vida particulares. 

E se a cidade é o espaço da diversidade, do cruzamento de mundos e "tribos" diferentes, ojornalista vivencia com mais intensidade este fato em seu cotidiano. Transitar por distintasesferas da metrópole, desvendando territórios heterogêneos e construindo um mapa, para muitoshabitantes desconhecido, é uma das funções do repórter - figura paradigmática do jornalismo –que, com as suas tarefas de apuração dos fatos e redação da notícia, se torna uma espécie decidadão do mundo. O jornalista atravessa fronteiras e tem acesso livre à quase todos os lugares.Dos meios oficiais aos marginais e perigosos. Essa convivência e proximidade com inúmerossegmentos da sociedade num alto grau de heterogeneidade gera no repórter um certo "ar blasé"diante da vida do qual fala Simmel ao descrever o indivíduo da cidade. Recebendo uma grandequantidade de estímulos, entrando em contato com diferentes realidades e diferentes pessoas acada dia, o jornalista precisa se proteger desse excesso de estímulos produzidos pela metrópole epela sua experiência profissional. Não é à toa que o ele é confundido pelo público com a notíciaele cobre e as regiões que freqüenta. Ao ser responsável pela cobertura de polícia, um repórterprecisará estabelecer relações com os habitantes deste mundo e terá seu nome fatalmenteassociado ao crime e à violência. Da mesma maneira o jornalista que trabalha na chamada"imprensa marron", tipo específico de jornalismo baseado no sensacionalismo, que age sem éticae se utiliza de chantagem e corrupção para atingir seus fins, possui uma determinada imagemjunto ao leitor. O filme A Montanha dos Sete Abutres ilustra bem este tipo de jornalista,inescrupuloso, cujo objetivo principal é sair do anonimato.  

E se o mundo urbano é o local privilegiado do anonimato em oposição ao campo ou àcidade pequena, para o jornalista esta vivência se torna marcante para a obtenção de sucesso estatus. O jornalista está atrás de um "furo" que nada mais é do que a possibilidade dediferenciação dentro da profissão, de individualização, de conquista de notoriedade e, portanto,de escape do anonimato, o que significará ter seu nome impresso na primeira página do jornal eser reconhecido pelos colegas e pela sociedade. Esta situação está presente nos três filmesselecionados. Para muitos jornalistas a carreira possibilitará uma ascensão social e obtenção deprestígio. 

Em muitos casos a noção de prestígio está associada à idéia de que o jornalista é o homempúblico nos termos de Sennett(1988). Aquele que está preocupado com o funcionamento dasociedade e com o bem comum, em oposição ao indíviduo moderno centrado em suas relaçõespessoais e intimidade. Neste aspecto o filme Todos os homens do presidente é exemplar parailustrar esta idéia do jornalista como cidadão atuante e transformador da realidade. Os doisrepórteres – Carl Bernstein e Bob Woodward – se colocaram não apenas à serviço doWashington Post, mas da sociedade e em última instância da democracia norte-americana. Elesse tornaram heróis. O filme salienta o empenho e a dedicação dos jornalistas em obter asinformações e levar a apuração até o fim. Naturalmente com o apoio da direção do jornal. Nãoquero afirmar que os dois foram ou são heróis, mas chamar a atenção para as representaçõesmais freqüentes dos jornalistas no cinema, que oscilam entre o herói e o bandido. De um lado ojornalista é o responsável por todo o bem, de outro por todo o mal. Quero destacar a imagemambígua e contraditória deste profissional. Ele fascina e atrai, mas também é repudiado edesprezado por ser ameaçador, como demonstram algumas produções cinematográficas.


*Trecho do artigo publicado na INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação / XXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Campo Grande – MS. O texto completo você pode conferir pelo link: http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/126095204111040878962932586357600200383.pdf


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