Cap.1
"Viver e não ter a vergonha de ser feliz...
E cantar a beleza de ser um eterno aprendiz.
Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será.
Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita."Gonzaguinha, O que é o que é
Era madrugada. Frio. Nem tanto, pois era a capital do estado. Um dos morros da capital. Roberto não entendia muito bem a razão da mudança. Mas era arriscado demais. O pai era vermelho. Ser comunista, engajado, ainda na década de setenta, era quase um desafio ao poder. Depois de algumas passeatas, panfletos, protestos, marxes pra cá e guevaras pra lá, a família tinha que se mudar. Quase fugir. Iriam para o interior, onde as ideologias não fariam tanta diferença. Na capital, ficava um tio, mais de direita e, por isso mesmo, mais inofensivo ao sistema. E com uma chance consideravelmente maior de se dar bem na vida.
Um caminhão já havia partido no dia anterior. Agora, uma perua velha – que naquela época já era velha – levava a família. Pai, mãe, um irmão e uma irmã do primeiro casamento do pai, o menino e um irmão do segundo casamento. Roberto tinha apenas seis anos.
O pai ouvia cantores boêmios, de vez em quando até arriscava algumas notas num violão que tinha. Torcia pelo time da estrela solitária e condenava o refrigerante vermelho – símbolo mor do capitalismo.
-O capitalismo vai comer até a água, filho – dizia, em tom profético.
Era daqueles caras que achavam que mulher é produto de cama e mesa. Os filhos são posses, quase escravos. Homem nunca chora. Não hesitava em usar a violência. Se tivesse que partir para agressão, não pensava duas vezes. Mesmo que fosse com os filhos ou com a esposa. Os dois filhos ainda eram bem novos quando a primeira mulher morrera. Problemas no coração. A segunda, mãe de Roberto, era costureira. Criava todos os filhos do mesmo modo. Até os do primeiro casamento a chamavam de mãe. O mundo de Roberto era o mundo de uma criança que começava a aprender algumas letras e sabia poucos segredos da vida. Brincava com os irmãos e continuava sem entender o porquê da mudança. Não entendia por que a vida tinha que ser assim. Mas seus olhos brilhavam quando podia brincar, correr, fugir do pai. Aí, sim, ele via a vida estranhamente bela e podia ser criança.
Já era claro e calor quando chegaram à cidadezinha do interior, na região serrana. Ali, a família construiria um novo lar. Ou o que imaginavam ser um lar. O pai havia comprado uma pequena chácara na saída da cidade. Tinha uns poucos bois, um pequeno riacho, uma queda d'água, um cavalo, uma carroça. A casa era o suficiente para a família de seis pessoas. O tempo iria fazer o pai recuperar as finanças.
As crianças da região logo fizeram amizade com os novos vizinhos. Até porque era uma questão de honra manter o acesso à cachoeira da propriedade. A diversão era ir com a turma, de preferência fugindo dos pais, para um mergulho. Mesmo na época do frio era divertido.
O tempo foi passando, os meninos crescendo e a região do sítio aos poucos se tornava urbana. Com a vizinhança aumentando, crescia também o círculo de amizade. Aquela amizade de criança, que não olha a cor da pele. Nem a do dinheiro. Às vezes uma briga, mas logo depois já estavam juntos. O pai mantinha a linha dura. O controle era severo. Havia horário pra muita coisa: horário pra levantar e deitar, pra ajudar em casa e algum horário livre, que, de vez em quando, também era controlado pelo pai. Quando o pai chegava da rua e havia algum trabalho para os filhos, assobiava de forma característica na entrada da casa. Os filhos que estivessem na rua precisavam ouvir e vir correndo atender o pai. Se assim não acontecesse, a briga era certa. O pai fazia negócios com a plantação e com os animais. Mesmo assim, encontrava tempo para organizar um campeonato de futebol com os meninos. Além de cartola, era o técnico de um dos times. Os filhos, com exceção do mais novo, eram titulares. Roberto nunca foi um grande jogador.
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Escritor Solidário
AcakProjeto criado pelo escritor e jornalista Arisson Tavares com o objetivo de promover a literatura e a solidariedade.