Até onde chega o perdão?

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Nunca pensei que conheceria a morte tão cedo. Que ela arrancaria um pedaço de mim e o levaria embora junto a alma de quem amo. Não posso dizer que fui tolo em não me preparar para isso, pois nós, seres humanos, costumamos nos preparar para algo apenas quando queremos que aconteça.

Teimo em chamar de "morte" o que sei que foi um ato feito por um humano, pois assim não preciso lidar com a angústia de saber que o homem que matou parte de mim, continua pelas ruas, tão livre quanto eu. Será que se um dia eu errar e suplicar por uma segunda chance, terei uma oportunidade tão boa quanto a dele?

Entrei de cabeça baixa na igreja onde aconteceria o velório, a família, que antes me odiava, passou a me acolher como se fosse um dos seus. Sabia que essa implicância dos meus sogros comigo passaria conforme os anos, mas nunca esperei que receberia minha sogra desesperada em meus braços, triste pela relação, que agora só existia em minhas memórias.

Antes que o padre começasse a falar, me dirigi até o palco com o auxílio do meu sogro, minhas pernas não se recuperariam tão cedo depois das agressões, e, tentar andar com muletas, apenas atrasaria a recuperação. O senhor de cabelos grisalhos me entregou um microfone e se posicionou ao meu lado. A capela estava lotada, e o caixão ainda se encontrava fechado.

¬– Quando entrei na escola, meus dias se resumiam apenas em Cláudia. Foi amor à primeira vista, ela era a menina mais bonita que já tinha visto em todos os meus seis anos de vida, era diferente das outras menininhas que me xingavam e riam de mim por eu querer brincar com elas. Ela sempre me salvou de encrencas, e quando crescemos, ela era a minha salvadora em matemática e física. Todos invejavam ela por ser a "aluna diamante", a mais bonita, a mais popular..., mas sua característica mais marcante, com certeza, era sua determinação. O melhor exemplo disso era a sua paixão por futebol. Mesmo quando todos diziam que uma loira bonita nunca seria uma jogadora de respeito, ou quando se ofereciam para ajudar ela a entrar para uma agência de modelos, ela não desistiu. Sua classificação para um dos melhores times do estado surpreendeu a todos, inclusive eu, pois mesmo sendo seu melhor amigo, não sabia que ela tinha evoluído tanto, em tão pouco tempo. Ela conquistou tudo aquilo em silêncio e com um sorriso para as críticas. Na  verdade, ela sempre sorria. Dos quinze anos que passamos juntos, só a vi chorar duas vezes. A primeira foi quando estávamos no oitavo ano, estávamos estudando juntos, como de costume. Cada um tinha cartõezinhos com as perguntas sobre a matéria da próxima prova, e quando chegou a minha vez de perguntar, ela começou a chorar como se fosse uma criança. Na hora entrei em desespero. Era sempre ela que me acalmava quando eu precisava, sabia me amparar quando estava triste, mas eu nunca tive de fazer isso com ela. Não conseguia imaginar nenhum motivo para seu choro, pois como todo mundo, julgava sua vida como perfeita. Eu perguntei o porquê de ela estar triste, e ela me disse que a vida de mulher não era para ela. Eu a abracei, pois não sabia como consolá-la, muito menos do que se tratava a "vida de mulher", por alguns meses, pensei que o que tivesse chateado ela fosse o machismo, até porque ela era um alvo para comentários absurdos. Depois de um tempo, descobri que Cláudia era bissexual, foi um acidente, eu estava procurando-a pelos corredores do colégio quando a encontrei aos beijos com uma de nossas colegas. Não tive nenhum tipo de repulsa a isso, já a tinha visto-a ficar com outros homens, e nunca tive nenhum tipo de preconceito em relação à homossexualidade. O que me incomodou de fato foi ela esconder isso de mim, pois eu sempre fui sincero com ela, ou quase sempre. Foi ali que criei coragem para me declarar a ela, o que sentia era real, e, talvez, se desse sorte, ela me escolheria.

Tive que dar uma pausa no discurso, os olhares tristes de todas aquelas pessoas que esperavam um esclarecimento sobre a morte de Cláudia, sobre mim pesavam. Nunca havia treinado para dar discurso no velório de alguém e confesso que é a tarefa mais difícil que já fora designada a mim.

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