Santa Cruz

102 37 3
                                    

A Santa Cruz. Uma lamentadora de túmulos, chora sempre nos funerais das mais ricas famílias irlandesas. Sempre vestida de preto e com um véu tão escuro quanto seu vestido de luto, lhe cobrindo a face, ela emite seus gemidos de dor e agonia, velando o corpo daquele ente querido que se foi. O privilégio de uma lamentadora era exclusivo dos irlandeses.

                       🍃🦋🍃

  A família O'Connor era dotada de vários dotes, com uma fortuna incontável e terras espalhadas por toda a Europa. Porém, em um lapso de loucura, provocado por um sonho premonitório, envolvendo o surto de Tifo que assolava seu país, o senhor da família decidiu abandonar tudo na Irlanda e se mudar para Londres, junto de sua esposa e as duas filhas. Com toda a fortuna que possuía, ele abriu uma funerária.
  A funerária Santa Cruz era luxuosa e apenas os mais ricos moradores da cidade tinham o capital necessário para velar e enterrar seus mortos com os O'Connor. Felizmente, para a rica família irlandesa, e infelizmente, para muitos londrinos, um surto de cólera estourou, fazendo a procura por covas aumentarem em números exorbitantes. Os O'Connor ficaram ainda mais ricos.
Entretanto, quando a morte chama, não há dinheiro no mundo que possa comprar um tempo a mais entre os vivos. O melancólico gemido de uma Banshee precedia seu grito de lamento. Da mesma forma que uma gritou para o rei James I da Escócia, em 1437, uma lamentadora gritará para a filha mais nova dos O'Connor.
  Eliza era jovem demais para se envolver nos negócios da família, porém não era jovem o bastante para escapar de um casamento forçado com um marquês. Sua beleza e a riqueza de sua família fizeram os olhos do homem calvo e levemente manco brilharem.
O marquês de Wellington cortejou-a e a cercou como um abutre, até que seus pais a convenceram a aceitar o casamento. Eliza sentia repulsa de seu noivo, porém sua mãe a prometera que, um dia, ela se apaixonaria por ele, e se isso não acontecesse, pelo menos ela seria uma marquesa.
Um jantar fora marcado para comemorar o noivado. Eliza estava pronta, produzida da cabeça aos pés, esperando a visita de seu noivo e alguns membros de sua família. A garota trajava um vestido verde, que havia aparecido de forma misteriosa em seu quarto. Quando foi para o lado de fora da sua propriedade, passeando pelo belo jardim, ela avistou uma das lavadeiras da casa, esfregando suas roupas em um balde.
Ela era jovem e muito bonita. Eliza se aproximou e sentou-se ao seu lado, observando em silêncio o trabalho da lavadeira.
Uma tinta vermelha, que mais parecia sangue, e que era sangue, mas Eliza preferiu excluir essa possibilidade, era lavada do vestido branco e liso, tornando a água cada vez mais escarlate.
Lamentadoras normalmente são vistas como lavadeiras, que esfregam o sangue das roupas de quem morrerá em breve. Eliza sabia disso, por isso não queria aceitar o fato da cor vermelha vibrante não ser tinta.
- Você é nova aqui? - a caçula dos O'Connor perguntou, tentando mudar de assunto.
Por breves momentos, pensou ter ouvido um lamento baixo, um choro sôfrego ao fundo. Mas estava enganada. Quando a lavadeira parou e encarou Eliza, ela jogou o vestido no chão junto com a água.
- Marquesa. - fez uma reverência ao se levantar.
Mesmo que Eliza ainda não tivesse se tornado oficialmente uma marquesa, sua família fazia questão de espalhar para os amigos e empregados.
Antes que a jovem pudesse falar qualquer coisa, a lavadeira havia ido embora, seu vestido jogado no chão havia sumido e não existia nenhum sinal da água escarlate jogada no chão.
Quando fora anunciada a chegada de seu noivo, Eliza O'Connor estava mais pálida do que o normal. Ela havia visto uma Banshee e esta havia esfregado o sangue de suas roupas. Seu corpo tremia da cabeça aos pés e, quando sua irmã mais velha, Mona, percebeu, segurou sua mão direita e apertou-a, tentando reconfortá-la.
Na cabeça de Mona, Eliza estava assim pois iria conhecer a família do marquês. Quando a caçula tentou explicar o que lhe assolava, sua irmã a ignorou, cortou o assunto e falou que se casar com ele não seria tão ruim quanto parecia.
Mesmo que sim, se casar com o velho calvo fosse ainda pior do que parecia, ela estava mais preocupada com a lavadeira lamentadora que acabara de ver.
O barulho da bengala batendo no piso de madeira do casarão deixou Eliza ainda mais desconfortável. O culpado pelo barulho era o velho manco, que acabara de entrar na sala onde toda a família O'Connor esperava para recebê-lo. Atrás do velho marquês, um jovem alto, bonito e dotado de muito charme apareceu, colocando suavemente as mãos nos cotovelos de seu pai, para ajudá-lo a caminhar. Ele era poucos anos mais velho que Eliza e tinha a idade de Mona. A futura marquesa perdeu o rumo e, por breves momentos, ignorou seu noivo, para encarar seu enteado com a boca aberta.
- Feche a boca, querida. - sua irmã disse, segurando o riso - Entrará moscas.
A caçula endireitou a postura, cumprimentando cordialmente o idoso com quem se casaria, deu um breve e respeitoso aceno de cabeça para o belo enteado.
O jantar seria servido em breve. Darcy, o senhor da família, levou o genro e seu filho para seu escritório, onde serviu para ambos uma dose generosa de seu uísque irlandês preferido. Por longos minutos que, para Eliza, mais pareceram horas, ela ficou parada ao lado da velha poltrona de seu pai, enquanto todos os homens da casa estavam sentados. Durante esse tempo, ela ouviu brevemente uma longa conversa sobre títulos e dotes, não deixando de notar que o filho do marquês mantinha seus olhos fixos nos dela, sem nenhum pudor ou vergonha na cara. Mais tarde, na mesma conversa, descobrira que seu nome era Victor e que era filho único. Ele herdaria todos os títulos e toda a fortuna de seu pai e, após o casamento com o marquês, herdaria também os dotes da família O'Connor.
Eliza ficou furiosa e, quando pensou em uma desculpa para sair do escritório, todos foram chamados para o jantar.
Na semana seguinte, as irmãs decidiram dar uma volta no centro, a fim de comprar novos vestidos para os bailes, aos quais eventualmente seriam convidadas. Os cabelos escuros da caçula estavam presos em uma trança longa, um chapéu preto lhe cobria os olhos. Mona não usava nenhum adereço, apenas um vestido preto, muito semelhante ao da irmã.
A moda causada pelo longo luto da rainha Vitória gerou uma onda de roupas fúnebres por toda a Inglaterra. Todas queriam parecer com a realeza, exibir suas roupas chiques e luxuosas, mesmo que por trás de tudo, a origem daquela febre gótica era trágica e triste. Porém, mesmo que não fosse obrigada a trajar roupas escuras, Eliza sentia-se melhor nelas. E era obrigada a confessar, torcia fortemente para que seu noivo morresse e ela tivesse que usar um véu negro, e lamentar em seu túmulo, como se realmente fosse uma viúva arrasada e entristecida com a morte do amor de sua vida. Com as mãos cheias de caixas, a caçula dos O'Connor caminhava distraída, poucos passos atrás de sua irmã mais velha. Mona mal prestava atenção no caminho que estava fazendo, atravessando as ruas de forma imprudente e, sem nem olhar para Eliza, ela continuava tagarelando sem parar.
Eliza travou o corpo quando ouviu o grito estridente de uma mulher, completamente estática no meio fio da calçada. Ela começou a olhar para trás, em busca de onde vinha o grito, mas não encontrou nada.
- Ouviu isso, Mona?
A morena questionou a irmã, que virou a cabeça para olha-la e continuou seus passos em direção à rua.
- Isso o quê?
E então, Eliza ouviu outro grito. Dessa vez mais alto, como se estivessem gritando em seu ouvido. E antes mesmo que pudesse jogar as caixas no chão e puxar sua irmã de volta para o meio fio, dois cavalos desgovernados e unidos por uma espécie de haste de madeira passaram por cima de Mona.
Em questão de segundos o grito estridente, que apenas Eliza ouvia, passou a ser o seu próprio grito. Todos na rua começaram a se juntar para ver o que havia acontecido. A filha mais velha dos O'Connor não resistiu.
Nenhuma lamentadora chorou em seu velório. Para a Banshee que acompanhava a família da falecida, não havia motivos para chorar.
Um improvável acontecimento que, de certa forma, nunca poderia acontecer, ocorreu de forma bizarra e misteriosa. A lamentadora havia se apaixonado.
Aquela era a hora de Eliza, porém a Banshee se recusou a anunciar a morte da mulher na qual amava. Mas por cobrança da morte, alguma alma havia de ser levada e Mona, por participar ativamente da vida da irmã, foi a escolhida.
Porém, uma lamentadora é uma mulher morta, e os mortos não podem se relacionar com os vivos.
Semanas após o acidente, uma carruagem chegava na porta da residência dos O'Connor. Victor havia vindo buscar Eliza, dizendo que seu pai havia o mandado. Era uma surpresa, pois nenhuma visita de seu noivo havia sido marcada e, mesmo com a dor latente da perda, a jovem não poderia recusar. Pelo menos o casamento havia sido adiado.
Quando entrou na carruagem, com um vestido escuro e um chapéu preto que lhe cobria a face, Eliza se sentou em silêncio, respirando fundo e se preparando para encontrar o velho Marquês.
- Não fui avisada de que o Marquês queria me ver. Ele quer tratar de assuntos sobre o casamento? - ela perguntou, escondendo o desanimo na voz.
Victor riu baixo, soprando o ar pelo nariz e encarando a morena, com um sorriso gentil.
- Meu pai não sabe que estou aqui. Eu que queria te ver.
Eliza ficou atônita por breves segundos, endireitando-se no assento e mexendo o corpo de forma desconfortável. Ela coçou a garganta, fazendo um barulho baixo e levou o corpo em direção a porta, para abri-la e ir embora.
- Por favor, fique.
Victor segurou os pulsos de Eliza, fazendo-a recuar e ficar quieta no assento.
- Isso não é apropriado, senhor. Eu estou noiva de seu pai. Serei sua madrasta em breve. - ela bufou, escondendo ainda mais o rosto no chapéu.
- A coragem é uma virtude, Eliza O'Connor. Não seja covarde, eu apenas quero passar um tempo com a senhorita.
A jovem concordou com a cabeça, fazendo com que o rapaz sinalizasse para a carruagem começar a andar.
- Do que adianta coragem em um mundo no qual não tenho direito de escolher nem o que eu visto, muito menos com quem casarei? - a resposta de Eliza tirou um sorriso do rosto de seu enteado, fazendo Victor se aproximar do rosto da jovem e acariciar sua bochecha direita, levantando em seguida um pouco do chapéu preto, encarando as orbes escuras.
- Por isso quero te levar para sair. Ainda não se casou com meu pai, logo tem todo o tempo para tomar uma dose de coragem comigo e se divertir.
Ela riu com a audácia de Victor, relaxando o corpo e se sentando de maneira confortável no assento novo e macio da carruagem. Ela passou suas mãos enluvadas por toda a extensão do vestido em tons de azul escuro, quase preto. Ela estava nervosa, pois não sabia aonde seria levada por seu enteado. Imaginava mil destinos, porém, quando ela se viu adentrando em um beco de uma das regiões e ruas mais pobres de Londres, seu rosto se fechou em um claro sinal de dúvida, encarando Victor com as sobrancelhas arqueadas. O rapaz manteve o silêncio, enquanto observava o local que ha muito já havia se tornado familiar para ele. Pessoas pobres e doentes pediam dinheiro e suplicavam por um pouco de ajuda, fazendo com que o coração de Eliza ficasse pesado.
- Sabe o que toda essa gente tem em comum, Eliza O'Connor?
- Nenhuma delas vai ser enterrada pela minha família? - chutou um palpite cruel, para tentar ao máximo manter a pose séria que sua família sempre lhe exigiu.
- Realmente não vão, mas não é essa a resposta.
Quando a carruagem parou em um frente a um estabelecimento de caráter duvidoso, Victor desceu e deu a mão para ajudá-la a fazer o mesmo. Logo, completou a frase:
- Ninguém aqui irá nos reconhecer, muito menos julgar ou entregar para nossas famílias. Afinal, eles não nos conhecem.
E só depois de entrarem no ambiente decrépito e perverso, Eliza percebeu que era uma casa de ópio. Seu corpo agiu involuntariamente, ouvindo seu subconsciente, que gritava para que ela saísse daquele lugar. Ela deu meia volta, porém Victor segurou seus ombros e a virou novamente para frente, chegando perto de seu ouvido e sussurrando:
- Coragem, Eliza O'Connor.
Homens bem vestidos fumavam ópio e consumiam álcool a rodo, algumas mulheres seminuas rodavam por eles, acariciando seus ombros e oferecendo mais drogas. Eliza nunca havia consumido nenhuma substância tóxica do gênero, já que seu pai era extremamente rígido e mal a deixava beber vinho.
Eles se sentaram em um local afastado, onde Victor se ofereceu para pagar todo o consumo dos dois e dispensou as mulheres que se ofereciam para dar-lhe ainda mais prazer. Ele estava sentado na frente da jovem, que encarava o chão e puxava o chapéu para baixo, a fim de cobrir ainda mais os olhos.
O filho do Marquês escorregou o corpo pelo sofá, parando ao lado de Eliza. Perto o suficiente para deixá-la ainda mais desconfortável. Parte de seu desconforto se dava ao fato de que ela temia que o frio em sua barriga fosse além de medo, e que sua vontade de beijar e se divertir com Victor estragasse sua honra e seu casamento infeliz. Em suas mãos estava um cachimbo longo e escuro, a fumaça de cheiro forte saía levemente quando o homem tragava, mas saía ainda mais quando ele a soltava, deixando um gosto acre e amargo na boca.
Depois de muita insistência e papo sobre coragem e virtudes, a filha mais nova, e agora a única que restara viva dos O’Connor, deu uma longa tragada na droga, fazendo uma careta estranha, logo após tossir forte.
Em seguida, eles começaram a se embriagar. Eliza estava solta, completamente chapada e sem restrições. Quando Victor tirou o chapéu da jovem e entrelaçou seus dedos nos cabelos escuros da nuca da morena, ela não relutou em deixar que o seu enteado a beijasse. Seu interior gritava por mais, em uma fúria de desejos a muito tempo censurados e trancafiados nas camadas mais profundas de seu subconsciente. A vontade de Victor de tirar todo aquele vestido escuro que sua madrasta usava era latente e, sem muito esforço, ele a levou para um dos quartos da casa de ópio, alegando que pagaria o dobro se precisasse apenas para usá-lo naquele momento, e poder deitar-se com Eliza sem culpa e remorso. Ela se casaria com seu pai em breve, mas naquele momento, nada daquilo importava e, talvez, ele pudesse fazer a jovem desistir do casamento. Para isso, ele esperava que ela se apaixonasse por ele. Ele planejava a morte do Marquês a muito tempo.
Quando o efeito das drogas passara, Eliza não se sentia arrependida por ter perdido sua virgindade antes de seu casamento. Ela se sentia aliviada por não ter, para sempre, estampado em sua mente a memória de sua primeira vez sendo tomada por um velho calvo e manco, que tinha idade para ser seu pai e, de fato, era mais velho que seu próprio pai.
- Queria que pudesse escolher com quem se casar. - Victor começou a falar, querendo jogar no ar a intenção de matar o próprio pai.
- Talvez, se eu pudesse, eu escolheria casar-me com você. - ela se aproximou, após terminar de se vestir e selou seus lábios com os do rapaz, sorrindo de forma apaixonada para ele - Afinal, o senhor é filho do Marquês e me tornaria uma marquesa do mesmo jeito.
Durante as semanas que se seguiram, o jovem casal recém apaixonado visitava a mesma casa de ópio, para ter suas noites mais quentes de romance. Tudo regado a muita droga e bebidas, onde o ambiente decrépito e a prostituição que lhes cercavam passou a fazer parte da vida do casal. Era normal ver mulheres doentes usando o pouco que restava de seus corpos para garantir seu sustento. Eliza tinha nojo de se aproximar das outras pessoas que compartilhavam o mesmo ambiente e a mesma droga, pois temia ficar doente.
O grito estridente da lamentadora ressoou dias antes de seu casamento. Todos as noites, durante 5 dias, a Banshee gritava cada vez mais alto, anunciando que a morte de Eliza estava próxima.
Ela deveria estar próxima. Porém, a lamentadora havia se apaixonado perdidamente por Eliza, e precisava anunciar a morte de alguém para compensar os dias a mais da filha restante dos O’Connor na terra.
Uma pessoa há muito prometida pela morte, ainda caminhava entre os vivos. E as graves consequências dessa maldita insistência da lamentadora em prolongar os dias de sua amada, começou a afetar as faculdades mentais da garota. Seu subconsciente sonhava com a morte todos os dias, desejando-a como um leproso deseja a cura.
Em seus sonhos, Eliza se encontrava com a lamentadora, que sempre aparentava estar desesperada demais para prolongar a sua vida. A dor da perda de sua irmã fazia com que a caçula sentisse vontade de se jogar de uma ponte. Mas a lamentadora sempre a impedia.
Sua hora já havia passado, mas a Banshee ainda gritava, anunciando a morte de alguém próximo a Eliza, a deixando louca de ansiedade, já que era a única que presenciava e escutava os gritos histéricos e lamentos da mulher morta, da qual havia se apaixonado por ela.
E, no dia do casamento, quando percebeu que o Marquês havia desaparecido, encontraram seu corpo muitas horas depois.
Ele havia tido uma overdose. Morreu na mesma casa de ópio no qual ela ia com seu enteado. Cercado de prostibulas contaminadas com sífilis, ele havia morrido durante uma orgia, organizada para ocorrer momentos antes do casamento.
Eliza agradeceu. Pela primeira vez ela havia ficado realmente aliviada pela morte de alguém e, enfim, poderia noivar com Victor e parar de se esconder com o homem que amava.
Deixaram as coisas as escondidas por alguns meses. O rapaz havia herdado os títulos e posses de seu pai e, quando toda a poeira da morte do Marquês foi dispersada, ele pediu a mão de Eliza em casamento.
Eles se apressaram para organizar o casamento. Com saudades da irmã, a futura marquesa se sentia em um misto de emoções e sentimentos quando se olhava com o vestido branco de noiva. O véu branco descia pelo rosto e seu cabelo longo estava preso em um penteado estiloso.
O dia do casamento havia chegado. Porém, antes mesmo de Eliza chegar no altar, a lamentadora começou a gritar em seu ouvido.
Ela havia visto a jovem mulher morta em suas roupas fúnebres, olhando-a dentro da igreja, sentada em um dos bancos, como se estivesse rezando. Eliza O’Connor a olhou, com um frio na barriga que lhe percorria para a espinha. Seu estômago embrulhou e ela sentiu medo, pois sabia o que seguiria.
A Banshee ainda gritava, um som ensurdecedor que apenas Eliza era capaz de ouvir. Ela não sabia quem iria morrer. A marquesa decidiu ignorar. Caminhando para o altar enquanto seu belo e jovem noivo a esperava. Se casaria com o homem que quase chegou a ser seu enteado e, mesmo que a situação seja um pouco estranha, ela o amava.
Porém, quando uma das grandes velas caiu, causando um incêndio repentino e desordenado dentro da igreja, Eliza correu para procurar sua mãe e Victor a seguiu.
Saindo de um cômodo reservado do santuário de cristo, sua mãe rastejava, deixando uma poça de sangue por onde passava. E quando a lamentadora parou de gritar, Eliza sabia que sua mãe não sobreviveria.
Com o casamento cancelado e sem data para uma segunda tentativa, a falecida com roupas negras não chorou no enterro da mãe de sua amada.
A jovem era a única capaz de vê-la, e apenas o fato de constantemente ser encarada pela lamentadora a deixava com medo. Com tanto medo que não foi capaz de ficar ali por muito tempo. Ela estava decidida a esquecer suas dores com o gosto acre do ópio e sua fumaça densa e anestesiante.
A dificuldade que seu noivo tinha em tirar a jovem daquele antro de perversidade aumentava na medida em que Eliza começava a surtar aos poucos.
Em um estado constante de embriagues e estupor, a jovem contava a seu noivo sobre a mulher morta que a perseguia a meses. Ela afirmava que, enquanto estivesse sobre efeito das drogas e do álcool, ela não veria e não ouviria o grito da lamentadora, mas Victor não acreditou. Para o Marquês, ela estava tão viciada que alucinava constantemente. Seu cérebro, apodrecido por conta das substâncias tóxicas encontradas na fumaça que a tanto tempo tragava e inalava, começou a enlouquecer a garota.
Como nada era capaz de fazer a garota sair daquela casa de ópio, ele passou uma informação crucial, que talvez pudesse fazê-la mudar de ideia e voltar para a casa de seu pai.
- Sua mãe foi assassinada. Ainda estão procurando quem a matou.
Ele concluiu de forma simplória, indo embora em seguida.
Eliza pensou por breves minutos, tentando fazer as engrenagens que comandavam seu cérebro voltarem a funcionar, pelo menos um pouco como funcionavam antes. Ela mudou de ideia, se levantando rapidamente e correndo atrás de Victor, que a esperava dentro da carruagem.
Ela estava fedida. A dias não saia do mesmo lugar. Seu rosto mostrava a face de uma viciada, que não dormia direito a muito tempo, pois sempre estava a mercê de seu ópio. Largada, completamente suja e em uma situação deplorável, ela se assemelhava a qualquer um viciado que frequentava a mesma espelunca perversa.
Quando Victor a levou para casa, a primeira coisa que Eliza fez foi se lavar e colocar uma roupa limpa. Seu pai a esperava em seu escritório, precisava urgentemente conversar com sua filha.
Após se alimentar de algo leve, ela foi ao encontro de seu pai, que a esperava em silêncio, enquanto bebia seu uísque diretamente do frasco.
Porém, algo estava diferente em sua expressão. E o vestido que usou no dia de seu trágico quase casamento estava em cima da mesa, entre os dois.
- Por que matou sua mãe, Eliza? - a voz fria de seu pai acertou a garota bem no coração, fazendo-a demorar alguns segundos para processar a informação.
- Como é? - ela indagou.
Sua expressão de dúvida se fazia fortemente presente naquele momento. Seu pai estava furioso, mas ainda sim triste, ao mesmo tempo. A acusação de que Eliza era a assassina de sua mãe foi formulada por marcas estranhas de sangue em seu vestido de noiva. Afinal, ela não havia encostado no corpo depois que o incêndio começou e sua falecida mãe tentou se rastejar para fora da igreja.
- Você a matou! Matou sua própria mãe! Por quê? Me diga o motivo.
- Eu... Eu não a matei! Foi ela que a matou! Aquela maldita Banshee que não para de gritar.
Seu pai ficou atônito, tentando entender a desculpa esfarrapada da filha, mas nada era capaz de explicar tamanha brutalidade.
- Banshees não passam de lendas! Lendas idiotas.
Eliza se levantou de forma brusca, jogando seu vestido no chão e começando a gritar com seu pai. Lágrimas escorriam de seus olhos e um nó se formava em sua garganta. Ela não aguentava mais.
- Ela anuncia minha morte, mas nunca me leva. Eu não aguento mais, pai. Eu quero morrer.
O egoísmo de um morto apaixonado pode, quando seu amor é direcionado a uma pessoa viva com as horas contadas, enlouquecer.
Os mortos não devem se apaixonar pelos vivos, muito menos ao contrário. Porém, Eliza não havia se apaixonado pela lamentadora, tudo o que ela sentia não passava do mais puro e genuíno ódio.
Um dos poucos membros que sobrou da legítima família irlandesa havia perdido completamente a cabeça. Trancafiada em seu quarto, Eliza passou o dia todo chorando e gritando.
Victor e seu - possivelmente ex - sogro conversaram o dia inteiro sobre uma solução plausível para Eliza. Escolheram interná-la em um manicômio, alegando que a marquesa estava louca.
Dias após a internação, os pontos passaram a ser ligados. Eliza havia empurrado Mona na frente dos cavalos desgovernados. Também havia pagado para induzirem seu noivo a uma overdose e, por último, havia esfaqueado sua mãe em uma discussão.
Com apenas uma morte proposital em sua conta, já que ela havia sido arquitetada também por Victor. A de sua mãe e irmã haviam sido um acidente, causado por um surto repentino, devido ao grito ensurdecedor da Banshee e da necessidade de uma alma ser levada no lugar de Eliza. E quando ela percebeu que tudo havia sido culpa não apenas da lamentadora apaixonada, mas também dela, a notícia do suicídio da marquesa correu por toda a nobreza e burguesia local.
Quando a morta apaixonada percebeu seu egoísmo e que, prolongando a morte de Eliza, ela apenas a fez sofrer ainda mais, ela permitiu que ela morresse.
E pela primeira vez, em toda a sua existência, ela chorou e lamentou verdadeiramente a morte da mulher que amava.

                                     Por Nathalia Nates

                         🍃🦋🍃


Nathalia Nates nasceu em São Paulo - SP. Desde criança, ela imaginava fanfics dos animes que gostava, logo, começou a escrever com RPG de chat. Escreveu fanfics de séries e filmes, tratou a escrita como algo sério. Entrou no mundo dos contos, trabalhando especificamente com os de terror.

 Entrou no mundo dos contos, trabalhando especificamente com os de terror

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.
Antologia Contos de FantasiaOnde histórias criam vida. Descubra agora