O2🦋"O dia em que fugi pela liberdade".

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Houston dormia na madrugada assombrosa enquanto o mar se revoltava cada vez mais. Eu subia novamente o penhasco da Lua e Landon me acompanhava com um cigarro nos lábios, feliz pela escuridão que nos envolvia e isso me fazia perguntar se pela manhã, quando a luz do Sol entrasse em contato com nossos corpos cobertos por tecidos pretos, ele sumiria e eu estaria vagando pela cidade sozinha.

O tormento respondeu minha pergunta mental com um riso que se perdeu entre as árvores no nosso caminho. O casaco preto dele balançava conforme seus passos mais leves que os meus eram dados em direção ao topo do penhasco.

Senti exaustão quando alcançamos o topo. Não era exaustão pela caminhada — o tempo caminhando para chegar até ali sempre foi familiar e aproveitava cada segundo —, era pelas lembranças que tinha naquele lugar com a Lua me encarando do alto, me desafiando a ir até a beirada e tentar mais uma vez.

Nos sentamos na beira, os pés pendendo na imensidão e mostrando que eu estava no comando. Eu tinha a escolha de afundar os pés na água profunda ou levantar e seguir para longe com o meu tormento de companhia.

── Você ficou comigo o tempo todo? ── indaguei, os olhos perdidos na luminosidade da Lua. ── Todos os oito meses?

── Fiquei. ── ele disse e a fumaça esbranquiçada do cigarro cruzou meu campo de visão. ── Digamos que não tinha coisa melhor para fazer. Ainda não tenho.

── Viu eles? ── sussurrei temendo pela resposta.

── Seus pais? ── assenti. ── Sim e aquela doida da Amália.

Ri. Amália foi um dos motivos que me levaram até o penhasco. Depois que casou-se com Michael, ela deixou de ser nossa Leah e passou a ser apenas Amália, aquela que era fria, que voltava sempre que precisava e depois falava como não fôssemos sua família. Como se fôssemos a vergonha de sua vida.

── Como você concluiu que ela é doida?

── Não sei se posso te falar isso. ── os lábios se reprimiram como se a resposta fosse horrível. ── Você acabou de acordar depois de tentar se matar.

── Vamos, você é um demônio, não precisa se preocupar com meus sentimentos. Apenas conte o que Amália fez para se mostrar doida.

Ficamos em silêncio por instantes, ele parecia determinado a não me contar as loucuras que a minha família cometeu enquanto eu estava em coma — o que vendo de um outro lado, não foi tão ruim, pois assim ao menos consegui fugir deles por oito meses.

A mão dele era gelada contra a minha e os dedos esguios trouxeram certo incômodo quando se cruzaram com os meus. Minha pele negra destacava-se no pálido que era a dele.

── Se você tentar se jogar mais uma vez terei a chance de te segurar agora. ── sorriu segurando o cigarro com a outra mão enquanto a direita apertava a minha. ── Mas não faça isso.

Não falei nada. Eu não poderia prometer algo que era totalmente imprevisível, minha calmaria que poderia mudar conforme as informações sobre os oito meses fossem jogadas para mim.

── Seus pais disseram que você tinha o costume de caminhar até aqui, aparentemente te deixava calma. ── ele balançou a cabeça, os cachos se movendo conforme o movimento. ── Eles não souberam de primeira que você estava de coma, acharam que você tinha desaparecido e essas coisas. A polícia disse que o correto era procurar por você em todos os hospitais da cidade antes de fazerem uma busca para te achar. Então te acharam lá, adormecida. Ninguém tinha as respostas de como você havia entrado em coma, quando os médicos apareceram apenas estava lá e havia uma ficha com seu nome nos seus pés.

── Você me levou até lá? ── indaguei desconfortável ao pensar em Landon me arrastando de um lado para o outro como se eu fosse uma boneca.

── É, eu posso fazer essas coisas. ── respondeu deitando-se na terra seca. ── Preenchi sua ficha com algumas baboseiras e estava tudo certo. Ninguém precisa saber que você tentou se matar e por isso ficou em coma. Com nenhum pouco de respeito, seus pais parecem dois infelizes que sempre querem mostrar o contrário. ── um suspiro escapou de seus lábios. ── Imaginei que vocês eram a família perfeita, então se eles descobrissem a verdade não te ajudariam. Provavelmente iriam piorar tudo com drama.

Mal conhecia minha família e estava completamente certo sobre eles. Talvez minha reação não fosse a certa, mas eu estava agradecida pelo tormento ter feito aquilo, por mais que todo o mistério fosse durar pouco. Logo eles me achariam, as perguntas viriam e o choque com todo o drama também. Os Beneditt tinham uma filha suicida.

── Você não precisa contar a verdade, Analie. ── ele sussurrou quando me deitei ao seu lado.

Os olhos do tormento eram brilhosos como se houvesse algo além de maldade, como se existisse esperança dentro de um demônio e a leveza da bondade. Podia não existir sempre, mas naquele momento existia e era exclusivamente para mim.

── E qual seria a mentira que se passaria pela minha verdade?

── Não minta. Podemos fugir, viver na noite e desaparecer pelo dia. ── o sorriso nos lábios dele demonstrava que não havia limite, não quando se tinha um tormento como companheiro. ── Você pode fazer o que quiser, Analie. A liberdade é isso.

Eu queria. Queria fugir, viver na noite dançando na luz do luar e me aquecendo nos raios solares longe de Houston, cumprimentando estranhos e visitando lugares como se fosse minha verdadeira vida. Ao mesmo tempo que queria isso, sentia que antes de sair da cidade deveria encontrar a liberdade no lugar em que fui aprisionada, ela estava em algum lugar. Talvez nos grãos de areia que pareciam ouro, no azul intenso do mar, no penhasco que beijava a lua, na minha casa amarela alegre que escondia brigas e tristeza ou na minha bicicleta vermelha que deixava sua marca em cada uma das ruas como se eu fosse única, como se todo o lugar pertencesse a mim.

── A liberdade começa aqui, Landon. ── falei. ── Começa no furacão que é essa cidade.

── Seja você o furacão. ── ele disse olhando para a Lua que nos fazia companhia.

Naquele mesmo instante uma borboleta branca cruzou nosso campo de visão e voou sobre o mar seguindo a luz da Lua. Ela desapareceu no horizonte.

── Depois se torne uma borboleta e desapareça na liberdade. ── ele completou.

E era aquilo que eu queria. Queria devastar Houston como o verdadeiro furacão que eu era, incendiar a cidade para que todos vissem a Analie que ficou escondida por anos; depois mergulhar na liberdade e desaparecer. Faria isso, colocaria fogo enquanto o tormento estivesse comigo, porque ele seria a minha gasolina; tinha certeza.

── O que você está pensando? ── perguntou e foi um tanto irônico já que podia ler minha mente.

── Que não posso voltar a ser a antiga Analie.

── A Analie de seus pais?

── Sim. ── respirei fundo. ── Eu quero ser a verdadeira Analie.

── Minta. ── Landon levantou-se em um pulo e me segurou pelo ombro. ── Diga que você perdeu a memória e refaça Analie. Estou falando, seja o que quiser.

── Então fugi do hospital porque não sabia quem eu era verdadeiramente? ── perguntei pensando na ideia. Ele assentiu. ── A partir de hoje vou me reconstruir!

Soltei-me do toque do tormento e levantei abandonando a chance de morrer pela segunda vez, de me jogar do penhasco. Livre escorreguei pelo gramado, me esbarrei nas árvores e me arranhei nos galhos até que caí e bati a cabeça em uma pedra. A última coisa que ouvi foi Landon amaldiçoando a minha euforia que me levou para a escuridão mais uma vez.



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