Capítulo 2: Queda

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      O QUÊ TÁ ACONTECENDO!? É tudo o que eu consigo pensar agora.
      Pra falar a verdade, sequer penso a essa altura, só consigo ouvir minha própria respiração acelerada e os meus passos ecoando pelas ruas desertas, acho que é isso o que acontece depois de correr por quase dois quarteirões inteiros.
      Mesmo depois de todo esse trajeto, ainda não encontrei sequer um ponto que me servisse de referência ou lembrasse de uma das diversas vezes que eu e o Jhon saíamos atrás de algum jogo que tinha sido lançado e acabávamos encontrando no outro lado da cidade, algo que talvez nunca mais... O que? Mas que droga de pensamento é esse? É claro que vai acontecer! Isso tudo não deve passar de um daqueles alertas de evacuação de última hora que só servem pra assustar todo mundo e fazer a gente andar por quilômetros, não é?
       Certo, mas se eu estiver certo sobre isso ser um mal entendido, o que explica aquele caos nas ruas?
       E o mais importante, o que explica o estado do motorista? O sangue negro e viscoso, pele escurecida, enrugado, e aquela feição de sofrimento, de dor, desespero, ele parecia precisar de ajuda, mais do que qualquer outro naquela sala.
       Droga! Agora não é hora de pensar sobre ele, eu preciso parar e encontrar meu caminho pra casa.
       Aos poucos eu diminuo o ritmo de corrida até que eu paro completamente e o som de passos cessa junto.
       Alguns minutos ofegante e consigo respirar fundo me recompondo, ao menos um pouco, faço-o enquanto olho ao redor. Não a sequer um sinal de vida.
       Agora pareço estar em uma espécie de bairro industrial, existem prédios de todos o tamanhos, cores e estilos, seria uma bela vista caso não estivesse tudo destruído. Carros capotados pegando fogo dentro de algumas fábricas no lado direito da rua fazem um som contínuo de alarme, não parece que vai parar tão cedo, além disso, também tem vidros estilhaçados e coisas espalhadas pelo chão, talvez isso tenha começado bem antes de eu e todos da escola nos darmos conta.
       —Um ponto alto! É isso.
       Com certeza poderia enxergar melhor se for para o topo de um prédio ou uma contrução, além disso não me parece uma boa ideia ficar no meio da rua por muito tempo, e nem se quer poderia, fumaça está começando a se alastrar por todo lugar, mais coisas como as que estavam atrás das pessoas quando eu saí da escola podem estar por aqui, e eu prefiro evita-las, se possível.
        Mesmo com dificuldade, dou uma boa olhada ao redor, e percebo que existem alguns prédios em construção no final da rua onde já é próximo da esquina, talvez eu consiga ter uma boa visão se eu chegar ao topo, e é lá onde eu preciso ir agora. Tem um prédio enorme logo depois da esquina, provavelmente vou conseguir ver ao menos a escola de onde saí, de lá fica fácil me localizar.
        Caminho com passadas curtas e rápidas por alguns segundos, até que ouço passos vindos do prédio a esquerda. Será que alguém realmente não percebeu o que está acontecendo? Só pode ser coisa da minha cabeça, dirijo meu olhar na direção de onde vem o som, já com o pensamento de ser minha mente brincando comigo. Alguns minutos e eu já estou ficando louco? Sou realmente patético.
       Fico ainda mais incrédulo quando vejo alguém dentro do prédio, o que parece ser uma garota, julgando pela estatura deve ter a mesma idade que eu, talvez mais velha, ela está usando um vestido branco, se não fosse impossível eu diria que ele brilha de tão branco.
       Ela tem pele clara e um cabelo curto que vai até seus ombros, são cor de vinho, consigo dizer, já que se encontra no único ponto iluminado de lá, as escadas.
       Está de costas, não consigo enxergar seu rosto, parece estar correndo, talvez precise de ajuda, ou esteja perdida, por via das dúvidas eu devia perguntar, não que eu esteja numa situação muito diferente, mas é como dizem, duas cabeças pensam melhor que uma.
       Depois de algum tempo de admiração, jamais estaria tomando coragem, não, isso é ridículo!
       Decido entrar no prédio e ir tentar ajudá-la, já não consigo enxergá-la daqui de fora, dentro do prédio é quase tudo escuro, a não ser pelos pequenos feixes de luz que adentram o lugar através de espaçamentos no teto e a escada.Como eu já havia dito são poucos, mas o suficiente para me orientar até lá.
       Ao redor do local é tudo fechado e cercado por tábuas de madeira, e é esse o motivo de tamanha escuridão.
       —Tá, mas o que bulhufas uma garota faria no meio dessa construção abandonada em uma situação dessas?— Esse é o tipo de pergunta que devia ter me feito logo de início? Talvez, mas ser impulsivo não me permite ter o luxo de pensar antes de agir.
       Depois de desviar de alguns cacos de vidro e lascas de madeira no chão, finalmente entro na construção. É mais escuro do que parecia, olho ao redor e dessa vez nem mesmo enxergo meu corpo direito, parece que o chão está molhado, o curioso é que não me lembro de ter chovido hoje, bom, deve ser algum tipo de infiltração e por isso a obra parou, mas preciso manter o foco e encontrar a garota, ela está aqui em algum lugar.
       —Oi?! Tem alguém aí? Tá tudo bem, eu só quero ajudar.— Exclamei alto enquanto continuava adentrando relutantemente o salão.
       O som, tanto das minhas palavras quanto dos meus passos, ecoam por todo o lugar, para minha infelicidade nenhuma resposta me é dada.
       Eu realmente vi alguém, não é? Talvez eu esteja louco mesmo, que ideia genial! Melhor voltar. Aparentemente eu não posso nem mesmo confiar na minha mente, ótimo!
       Dou meia volta e é quando percebo estar pisando na água novamente, mas a sensação é pastosa e pegajosa, se eu estivesse descalço isso seria terrível, com certeza, e parece ter algo no chão do lado do meu pé direito. Nesse escuro eu sequer consigo enxergar meu próprio pé, então não dá para dizer o que é.
       Me abaixo e decido checar, parece um pedaço de roupa, na verdade está bem sólido, como se tivesse um braço dentro dessa manga longa. Levei algum tempo, mas finalmente me dou conta e a ficha cai. Um braço? Não só isso, o corpo inteiro! O cadáver de alguém! Aquele líquido no chão não era água, era sangue! Está por toda parte.
       Em que lugar eu fui me meter?
       Parando pra escutar melhor, consigo ouvir uma espécie de grunhido, vindo do corpo que estou próximo, não só dele, os grunhidos vem de toda parte, tem dezenas de cadáveres espalhados pelo lugar! Essas coisas devem ser iguais as que eu vi quando estava fugindo, é melhor tomar cuidado, qualquer movimento e eu posso ser pego, algo me diz que elas não são muito amigáveis.
       Aos poucos, me levanto, numa tentativa de me afastar do corpo, até então está tudo bem. Já de pé, vou dando passos lentos e o mais silenciosos que consigo, alguns sons de quando toco o sangue no chão são inevitáveis e hora ou outra eu paro e dou uma olhada ao redor, como se eu conseguisse enxergar algo.
       Vamos, falta pouco agora, o salão é bem grande na verdade. Como sempre, eu me ponho em situações das quais eu nem mesmo precisava.
       Em um descuido, dou uma passada mais rápida e levanto minha perna o suficiente pra que o celular deslize e caia. Meus olhos se esticam enquanto ele cai e no momento do choque contra o chão os fecho torcendo para não ser percebido, o som ecoa por todo o salão, perdura por segundos e então cessa.
       Consigo sentir cada parte do meu corpo se arrepiar, meu cérebro já pensou em milhares de possíveis finais, em nenhum deles eu saio vivo, forço ainda mais os olhos e cerro os lábios enquanto me encolhi em mim mesmo.
       Segundos passam e não ouço nada, nem mesmo os grunhidos, abro parcialmente os olhos e verifico, nem mesmo um movimento das coisas, relaxo o corpo lentamente em simultâneo com a abertura total dos olhos, parece não ter sido o suficiente para acordá-los.
       Finalmente relaxo o corpo completamente, volto a respirar com mais calma, um leve sorriso de canto se abre em meu rosto. Agacho em busca do celular no chão, antes mesmo que eu pudesse me assustar uma das criaturas está logo na minha frente. É exatamente como o motorista estava, mas ainda pior, esse não tem sequer a parte superior de sua cabeça, a partir da mandíbula para cima. Tem sangue escorrendo pelo seu queixo.
        Em um avanço rápido a criatura se joga na minha direção. Tento uma esquiva me erguendo e dando um leve salto pra trás por puro instinto, mas sem sucesso, o chão está completamente ensanguentado, e isso me faz escorregar, perdendo assim o equilíbrio, caindo de costas no chão, algo amorteceu minha queda, a criatura caiu após sua investida falha logo depois de mim na minha frente, jogando sangue em toda a parte superior do meu corpo.
        Sinto algo se mexer logo atrás de mim até que percebo que é outra criatura, isso amorteceu minha queda
        Preciso levantar, rápido!
        A criatura em que caí tenta me agarrar, num movimento desesperado, com as mãos, me solto da criatura, em seguida me levanto quase escorregando de novo, olho pra saída e percebo que agora todas as outras criaturas estão se levantando. Tentar sair por lá seria suicido. Olho ao redor e não me restam muitas opções além de morrer ali mesmo, só tenho uma chance. Preciso subir os andares, o mais rápido que puder.
        Em direção as escadas, nem mesmo imaginava que conseguia correr a essa velocidade, alcanço-as em poucos segundos, finalmente luz, luz de verdade, consigo enxergar claramente as escadas e a mim mesmo. Não tenho muito sossego, as criaturas estão próximas, essas escadas são a solução, subo dando saltos de um degrau ao outro, e então consigo subir, chegando no andar de cima eu me deparo mais uma vez com a garota, só que dessa vez eu vejo o seu rosto, ela tem a pele estranhamente clara, mais do que parecia, seus olhos tem cores diferentes, já li sobre isso na internet, heterocômico? Não faço ideia, um azul claro e puro, o outro tem a cor cinza. Está agachada, na minha direção a alguns metros, ao lado da próxima escada, vasculhando o cadáver de uma dessas coisas, essa parece estar realmente morta. Suas mãos estão na parte interna do corpo, parece que não é tão sútil quanto imaginava. Seu vestido que antes fora totalmente branco, agora está manchado de sangue, assim como seu rosto, pelo visto ela tem uma espécie de arma branca, uma espada possivelmente.
         Finalmente parece notar minha presença, seu olhar penetra o meu, parece até mesmo enxergar minha alma ou algo parecido. Cerrou os olhos e contraiu sua mandíbula, eu me sentiria desconfortável se ela não fosse tão linda, essa vista não se mantém por muito tempo, se ergueu apoiando-se nos joelhos, de pé esfregou a bochecha manchada de sangue numa tentativa de limpa-la e partiu  rapidamente em direção a próxima escada logo ao lado. Junto de sua saída, uma leve penumbra adentra o recinto, quase como se a luz tivesse acabado de fugir, ou eu tivesse colocado óculos escuros.
         Parecem ter mais criaturas naquele andar, que droga, por que tem tanta gente morta aqui? Que eu me lembre esse prédio tinha dois andares, o próximo é o terraço, essa garota vai me matar, mas não tenho escolha a não ser subir também. Cheguei no topo e a menina mais uma vez já não estava lá, claro, não podia esperar outra coisa. Agora eu estou sem rota de fulga e as criaturas já estão nas escadas do segundo andar, não consigo pensar em nada que possa me tirar dessa situação, melhor me afastar das escadas e tentar encontrar algo que possa me ajudar, difícil imaginar algo que vá me tirar de uma situação dessas.
         Cada vez mais eu me aproximo do parapeito, não consigo ver uma rota de fulga viável, parei de contar quando a décima segunda coisa chegou, e tem muito mais vindo. Quanto mais eles avançam, mais eu recuo até que finalmente me deparo contra o parapeito, e no instante em que apoio meu corpo, o mesmo se rompe, assim caindo, e com ele, eu perco o equilíbrio, indo junto.
          Minha respiração está acelerada, meus pulmões doem e eu começo a entrar em pânico, agora é definitivo, vou morrer. Quem diria, morrer tão cedo não estava nos planos, é óbvio.
          Isso tudo por culpa daquela garota, que droga, mas acho que eu sou o maior culpado. Que ótima ideia Danthe, realmente! Entrar numa construção abandonada em um lugar que você não conhece, sozinho, totalmente escuro e sem motivo aparente! As vezes eu me impressiono com o quão idiota eu sou.
          Dessa vez não vai ter ninguém pra me ajudar, como na vez em que meu pai pegou eu e o Jhon fazendo uma armadura com latas de refrigerante pro gato e a mamãe elogiou a armadura, livrando a gente de um sermão que ia ser demorado, com certeza. Cara, aquele gato ficou incrível.
          Foi mal Jhon, acho que a gente não vai poder disputar por tudo e virar madrugadas jogando, não vou mais escutar a mamãe reclamando por deixar a toalha molhada em cima da cama, e nem o papai tirando sarro de mim por perder mais uma vez nos jogos.
                Essa queda está demorando demais, é como se estivesse em câmera lenta. Enquanto caio, consigo enxergar dentro da construção, tinham muitas criaturas dentro. Franzi a testa e fiquei boquiaberto com algo lá dentro, a garota me olhava de soslaio com uma expressão séria e não muito específica, escorada na borda da construção.
                Antes que eu pudesse perceber já cheguei ao nível do chão, mas não foi ele que encontrei, e sim água, não o suficiente pra amortecer minha queda por completo, deve ser um córregos dos cidade. Sem tempo de sentir esperança, bati minha cabeça contra o chão, minha visão, principalmente por conta da água, embasa, e aos poucos fica totalmente escura. Que jeito ridículo de se morrer.

                                    II

      A morte é tão empolgante quanto diziam.
      Uma escuridão enorme e um sentimento estranho de algo te cutucando nas costas, realmente incrível…
      O quê? Algo me cutucando?
      Tenho quase certeza que isso quebra as regras de se estar morto. Reparando agora, tem alguns feixes de luz que consigo enxergar, todos vindo de cima, sinto também um cheiro terrível, acho que meu corpo não ia se decompor tão rápido, algo está errado.
      —Mas que droga é essa, onde eu estou? Eu realmente sobrevivi?
      Me apoio no local onde eu me encontrava deitado, ponho o peso do corpo sobre o meu braço esquerdo e estendo o direito pra cima, com a mão aberta, na esperança de sentir alguma coisa, e de fato, algo esta a cima de mim, leve o suficiente pra eu conseguir erguer sem muito esforço, empurro o objeto que estava logo acima de mim, assim tendo a confirmação definitiva. Realmente estou vivo.
       Por algum motivo eu sobrevivi, o córrego onde eu caí está alguns metros à esquerda. Tudo está girando e meu corpo pesa mais do que o normal, levanto de onde eu residia, dou um pequeno salto para fora desse local, viro e vejo que estava dentro de uma caçamba de lixo, em uma espécie de beco, com um prédio cinza desbotado e outro vermelho onde a caçamba se encontra encostada. Olhando para o outro lado do córrego, consigo ver a obra de dois andares que eu estava, e inevitavelmente, me recordo da garota. Quando ouvia o Randy dizer que garotas são complicadas, não achei que fosse desse nível.
       Algumas perguntas me vem a cabeça: Quanto tempo eu passei desmaiado? E mais importante, como saí daquele córrego e parei dentro dessa caçamba? Simplesmente não faz sentido. Porém mesmo intrigado, preciso prosseguir e encontrar minha família, esse córrego fica próximo de casa então eu devo ser capaz de fazer meu caminho até lá, está chovendo, vou me apressar.
       Depois de me confundir um pouco, finalmente encontro algumas casas  que são familiares, e assim sei que a minha está uma curva de distância. Basta virar essa esquina, logo a frente dessa rua de via dupla e voilà, casa. Meus lábios se esticam e curvam-se, até que se separam e dão espaço para os meus dentes, meus olhos abrem mais do que o normal, sinto que a cada passo estou mais próximo da minha família, talvez meu pai saiba o que está acontecendo.
       Preciso contar pro Jhon que eu bati o recorde que temos de quem pulou a maior altura do trampolim na piscina do colégio. Cair do terraço de uma construção deve contar. Acho que dois andares é um pouco mais alto que três metros.
       Finalmente dou a curva na esquina, virando a direita, estou na minha rua, nossa casa fica no mesmo lado que estou, consigo ver nosso gramado e a caixa de correio um pouco ultrapassada mas… Tem algo a mais na frente de casa. Uma espécie de… Cruz? Porque fizeram isso na frente de casa? Tantas perguntas, nenhuma resposta.
       Chegando mais próximo vejo, de fato, é uma cruz de madeira, e tem até mesmo um nome escrito nela.
       —Robert Space? Que droga de brincadeira é essa? Impossível, meu pai não iria morrer, ele não pode morrer…
       Após essas, já não me restam mais palavras. Parte de mim quer acreditar que isso é mentira ou um tipo de brincadeira, mas ao mesmo tempo algo dentro de mim está estranho, como se estivesse levando isso a sério, como se parte de mim tivesse morrido.
        Minhas pernas perdem as forças aos poucos, até que caio de joelhos no chão em frente a cruz com um olhar vazio na direção do solo. Antes mesmo que eu perceba, lágrimas escorrem pelo meu rosto até que caem, chegando ao chão poucos momentos depois. Um solo molhado por lágrimas, manchado por sangue, frio e sozinho. É esse o lugar em que a pessoa que me ensinou quase tudo que sei sobre esse mundo agora está, onde nunca mais vou o ver, ouvir ou conversar…
       Como?
       Porque?
       Quem?
        Isso não podia ter acontecido, o que aconteceu? Não… Eu não consigo aceitar isso…
        Sequer controlo meu corpo a essa altura, minha mente está uma completa bagunça, milhares de coisas passam por ela e isso me deixa louco.
        Uma expressão vazia, olhos arregalados e voltados na direção do solo, sequer uma palavra, nenhum ruído além do vento que percorre a rua, até que finalmente algo é dito.
         —Tem que ser mentira.

Convergência: FrioOnde histórias criam vida. Descubra agora