Como Bertrand de Jouvenel sabiamente salientou, ao longo dos séculos os homens foram formando conceitos com o intuito de refrear e limitar o domínio estatal; e o estado, recorrendo aos seus aliados intelectuais, tem se mostrado capaz de transformar, um a um, todos estes conceitos em carimbos de legitimidade e virtude, anexando-os aos seus decretos e ações. Originalmente, na Europa Ocidental, o conceito de soberania divina afirmava que os reis podiam governar apenas de acordo com a lei divina; os reis, entretanto, perverteram esse conceito e o transformaram em um carimbo de aprovação divina para qualquer ato real. O conceito de democracia parlamentar começou como uma restrição popular ao domínio monárquico absoluto e terminou com o parlamento não apenas se tornando parte essencial do estado, como também a manifestação da plena soberania deste. Tal como de Jouvenel conclui:
Muitos escritores interessados nas teorias da soberania se debruçaram sobre estes mecanismos restritivos. Mas, por fim, cada uma destas teorias perdeu, mais cedo ou mais tarde, o seu propósito original e acabou por funcionar como um trampolim para o Poder, provendo-lhe a ajuda poderosa de um soberano invisível com o qual ele podia, com o passar do tempo, se identificar por completo.
O mesmo aconteceu com doutrinas mais específicas: os “direitos naturais” do indivíduo, consagrados por John Locke e pela Carta dos Direitos (Bill of Rights), converteram-se no estatista “direito a um emprego”; o utilitarismo abandonou seus argumentos em prol da liberdade e passou a se concentrar em argumentos contra a resistência aos ataques do estado à liberdade etc.
É certo que a mais ambiciosa tentativa de impor limites ao estado foi a Carta dos Direitos e outras partes restritivas da Constituição Americana, na qual foram escritos limites explícitos ao governo os quais deveriam servir como lei fundamental a ser interpretada por um sistema judicial supostamente independente dos outros ramos do governo. Todos os americanos estão cientes do processo ao longo do qual esta construção de limites presentes na Constituição foi sendo alargada de modo inexorável durante o século passado. Mas poucos foram tão perspicazes como o Professor Charles Black em notar que, neste processo, o estado transformou a própria revisão judicial, a qual, de um mecanismo limitador, passou a ser cada vez mais um instrumento que provê legitimidade ideológica às ações do governo. Pois se um decreto judicial de “inconstitucionalidade” é um poderoso entrave ao poder do governo, um veredicto implícito ou explícito de “constitucionalidade” é uma arma poderosa para promover a aceitação pública de um crescente poder governamental.
O Professor Black começa a sua análise indicando a necessidade crucial da “legitimidade” para que qualquer governo sobreviva, sendo que esta legitimidade corresponde a uma aceitação majoritária básica do governo e de suas ações. A aceitação da legitimidade torna-se um problema peculiar em um país como os Estados Unidos, em foram colocadas “limitações substanciais na teoria sobre a qual o governo se baseia”. O que é preciso, acrescenta Black, é um meio pelo qual o governo possa assegurar ao público que a expansão dos seus poderes é, de fato, “constitucional”. E isto, conclui, tem sido a principal função histórica da revisão judicial.
Deixemos Black ilustrar o problema:
A ameaça suprema [para o governo] é a ampla disseminação de um sentimento de ultraje e desafeição entre a população, e a consequente perda de autoridade moral por parte do governo, independentemente de quanto tempo ele consiga mantê-la pela força ou pela inércia ou pela simples falta de uma alternativa atraente e imediatamente disponível. Quase todas as pessoas que vivem sob um governo com poderes limitados serão, cedo ou tarde, sujeitados a alguma ação governamental que, em sua opinião, consideram estar além do poder do governo ou mesmo totalmente proibida ao governo. Um homem pode ser conscrito embora não encontre nada na Constituição autorizando o recrutamento para o serviço militar obrigatório .... A um agricultor é dito o quanto ele pode produzir de trigo; ele acredita, e descobre que alguns advogados respeitáveis partilham desta crença de que o governo tem o direito tanto de lhe dizer o quanto de trigo ele pode produzir como de lhe dizer com quem é que a sua filha se pode casar. Um homem vai para a cadeia por dizer o que quer e entra em sua cela proferindo .... “o Congresso não passa-
rá quaisquer leis que limitem a liberdade de expressão” .... A um comerciante é dito o quanto pode cobrar, e quanto tem de cobrar, por leite desnatado.
Existe uma ameaça real que cada uma destas pessoas (e quem não se encontra entre elas?) chegue a um momento em que irá confrontar o conceito de limite do poder governamental com a realidade (tal como a vê) da flagrante transgressão dos limites efetivos, e que tire a conclusão óbvia acerca do status do governo em relação à legitimidade.
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A ANATOMIA DO ESTADO
NonfiksiTodos os créditos ao Instituto Mises Brasil (IMB), no site Mises Brasil, encontra vários artigos, além de e-books gratuitos essenciais sobre o libertárianismo. Em A anatomia do estado, Murray Rothbard explica o que o estado é e o que ele não é. Ele...