1. Jantar

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26 de Fevereiro de 2156

   O silêncio está instalado no meu quarto enquanto as mãos pequenas das minhas irmãs mais novas mexiam no meu cabelo, entrançando uns fios nos outros. Apesar de os seus risos serem uma sinfonia para os ouvidos de qualquer pessoa, o silêncio que nos rodeava era, definitivamente, é o som a que mais gostava. Afinal, o silêncio é o barulho solidão, sinal de movimentos nulos, medo, trauma. E não haveria outras palavras senão essas para me definirem. A mim e ao mundo que me rodeia.

   Uma gota de chuva cai sobre o vidro da janela chamando a minha atenção. Os invernos em Kahli eram tristes, frios e cinzentos. Sucessivamente, outras gotas de chuva caem e desfocam a visão para o lado de fora, onde a pouquíssimos metros se encontrava um muro enorme que dividia duas cidades.

   "Eva?" A mais velha chama numa voz muito baixa, mas que captou na mesma a minha atenção. "Para que serve aquilo?" Os seus olhos apontavam para o muro alto que fazia parte da vista da janela do quarto. A serenidade que eu trazia na minha cara foi substituída por um semblante nas sobrancelhas e um franzimentos dos lábios. Elas ainda não tinham idade para saber a verdade.

   "O muro serve para separar as pessoas boas das pessoas más." Expliquei de forma a que a pequena percebesse. Talvez uma verdade menos malíciosa protegesse estas duas meninas do ódio do Homem.

   "O jantar está quase pronto meninas."  A voz da minha mãe preenche o quarto. Ela pela primeira vez parece mostrar um bocado de preocupação devido à pouca conversação que existia aqui. Eu odeio esse sentimento de preocupação, sobretudo vindo dela que nada fez para impedir o que me aconteceu.

   "Por favor, mãe, apenas vai comer com eles. Eu já desço."  Murmuro baixo, mas sei que ela ouviu pois momentos depois abandonou o quarto, junto com as minhas duas irmãs, que acabaram por amarrar a minha trança com rapidez. Elas dizem que o meu cabelo é o mais bonito da cidade.

   Eu odeio isto. Eu odeio esta zona tanto como odeio a outra. Ambas as duas zonas, Kahli e Ketler, pensam agir pelo bem da sociedade mas no fundo são as duas iguais. É algo um tanto confuso.

  A história de formação das duas zonas também é um tanto estranha. A lenda diz que dois irmãos pisaram esta terra, no início. Os seus nomes eram precisamente Kahli e Ketler, não se sabe bem o que aconteceu, mas pensa-se que Kahli tentou matar o irmão depois de ele ter dividido a terra em duas zonas. Isso no passado, onde cada Reino tinha apenas um só rei. Umas décadas depois, a prosperidade que havia em cada uma das cidades terminou quando a inquisição veio para tomar conta de nós, regressando ainda mais poderosa e mais bárbara.

  Agora, no presente, ambas as zonas têm o seu próprio governo, as suas próprias leis e regras presentes na constituição de cada uma. No entanto, a inquisição é a mesma tanto para Ketler como para Kahli. Não conheço as regras da constituição de Ketler, na verdade, nunca me interessou. Desde pequena que tenho de decoro os artigos de lei da minha zona. Eu sei todos, um pior que o outro.

   Cada cidadão Kahli tem o dever de odiar os cidadãos Ketler. Não devemos dirigir a palavra a eles ou somos severamente punidos.

    Isso é um completo disparate. Eles não podem simplesmente proibir uma pessoa de se expressar. Não podem proibir a base da comunicação humana. E não podem proibir a amizade com uma pessoa do outro lado. O problema é esse, eles podem. 

   Todas as raparigas de Kahli temem uma das regras a partir do momento que entendem o que é a íntimidade e conhecem o seu próprio corpo. Eu temo pelas minhas duas irmãs, elas são tão puras e inocentes. A excisão é uma mutilação genital feminina, normalmente eles retiram a única fonte de prazer uma mulher.

Inquisition || h.sOnde histórias criam vida. Descubra agora