Em um outro apartamento, no décimo andar, um jovem rapaz, esforçado, que acordava cedo todas as manhãs e dormia tarde todas as noites, me dava um pouco de esperança. Descobri que seu nome era Jorge depois de um tempo, mas não da maneira como eu gostaria.
Além dos problemas para dormir, eu acordava muito cedo.
A vida neste período já estava azeda, sem gosto, pensei em diversas vezes no porquê de tudo isto ter acontecido.
Toda manhã eu saia da cama, pegava o café e sentava de frente ao prédio da minha janela. E um rapaz me chamava a atenção, o Jorge.
Pai de um filho pequeno morava com sua esposa em uma kitnet, era quarto e sala tudo no mesmo local e uma cozinha improvisada. Em meia janela e eu já conseguia ver tudo. Naquele local não havia espaço sobrando, mas certamente não faltava vontade de vencer. Eu via como Jorge levantava toda manhã, preparava o café, acordava sua esposa e logo depois o seu filho que dormia em um berço improvisado no canto da cama.
Já vi àquela família comer ovo, arroz e feijão durante uma semana inteira. Um dia deixei uma sacola com leite, macarrão, molho e frango na portaria e pedi para que o porteiro entregasse ao rapaz que morava com uma moça e tinha um filho pequeno mais ou menos do décimo andar.
Jorge trabalhava com serviços gerais, estudava em uma faculdade que o fazia chegar em casa pelas onze e pouco da noite. Passava o dia todo fora. Sua esposa preparava alguns doces e vendia pelo bairro com a criança ao lado.
Em um certo dia, um cano de água estourou na kitnet do casal enquanto eles estavam fora de casa, alagou todo o espaço. Eles perderam uma encomenda, onde vi Jorge sua esposa chorarem durante horas por conta do dinheiro que provavelmente tinha sido perdido.
Toda vez que eu olhava para aquela janela, eu sentia vida. Cheguei a me questionar sobre a minha até, mas nada que me fizesse mudar. Afinal, um dia eu já fui aquela família, que não tinha nada, que começou do zero.
Jorge estudava toda noite acompanhado de uma luminária bem pequena, sentava no canto da mesa e ali ficava por algumas horas, sem computador, pegava alguns livros e fazia anotações.
O casal morava há mais ou menos um ano e meio na kitnet. Não recebiam visitas e nem davam festas. Eram apenas os três. Uma família que aos olhos de todos poderia ser extremamente fragilizada, mas que por dentro tinha muita força de vencer.
Era quarta-feira, Jorge levantou, fez o café, chamou a esposa e saiu com sua caixa de ferramenta nas mãos e sua mochila nas costas. Mais um dia para o jovem sonhador.
Eu esperava Jorge voltar, era bonito quando ele chegava em casa, mesmo cansado, com a esposa já deitada muitas vezes com o filho, ele tentava não fazer barulho, tomava um banho, muitas vezes sem comer nada à noite, pegava seus livros e estudava.
Mas naquela quarta, Jorge não voltou pra casa.
Sua esposa acordou e não viu o marido que costumava chegar sem fazer barulho. Ela pegou o celular e fez uma ligação, certamente Jorge deveria ter perdido o ônibus por ter ficado até o fim da aula e se atrasaria, mas ele não atendeu. Ela ligou mais uma três vezes e nada.
Meu coração acelerou, se eu tivesse o número do Jorge, eu também ligaria para ele. Mas eu não tinha, Jorge não me conhecia, eu era apenas um vizinho que ele nunca conheceu. Inclusive no dia que deixei a sacola, à noite, eu os vi comemorando como se fosse gol do Brasil a janta que teria macarrão e frango e não mais o repetitivo ovo.
Eu fiquei ali, parado na frente da janela, esperando ele voltar. Mas nada. Até que no meio da madrugada o celular de sua esposa toca, e ela começa a chorar. Pega suas coisas e sai com o filho em um carro da polícia que os esperava na rua.
Algo tinha acontecido com Jorge. Eu estava torcendo, cheguei até lembrar que Deus existe, para que não fosse nada demais.
Por ora, era aquilo, nada a mais aconteceu naquela noite, a não ser a minha angústia em esperar.
No dia seguinte, acordei cedo, coloquei meus chinelos, vesti uma roupa e saí para comprar algumas coisas. Tento sempre sair o mais cedo possível para evitar filas.
Passo pela portaria e o seguinte comentário surge:
- "O senhor ficou sabendo do rapaz aí da frente?", questionou o porteiro.
- "Não, quê rapaz?" - respondi.
Ele rebate:
- "O Jorge, o rapaz que foi morto ontem à noite pela polícia."
Meu coração que mal batia, parou.
- "Não fiquei sabendo, o que aconteceu?"
- "Parece que confundiram ele com um bandido e o acertaram no ponto de ônibus, morreu dentro da ambulância indo pro hospital. Acabou de passar na TV."
Naquele momento, disse que tinha esquecido a carteira e dei meia volta para o meu apartamento. Não fiz compra, não comi e não quis mais olhar para àquela janela.
Fiquei pensando o que seria daquela mulher, do filho, daquela família. Eles eram tão jovens, tão cheios de esperança e tudo se acabou por um mero detalhe, o confundiram.
E mais uma vez eu tive a certeza de que a vida é injusta, cruel, tira o que é mais sagrado de você sem explicação, te faz sofrer sem nem te dar motivos, apenas te racha no meio e vai embora. E olhar para a vida do Jorge, era como se eu pudesse em alguns momentos reviver a minha, onde as coisas ainda faziam sentido e tudo tinha cor, cheiro, nome, pele e sabor.
Sua esposa depois de alguns dias colocou a criança no colo e pegou o resto que tinha lhe sobrado, duas malas foram suficientes para tudo aquilo que viviam. Tanto esforço, tanta luta, para no fim caber em duas malas.
Não sei para onde esta mulher foi, nem mesmo pude me despedir do jovem Jorge. Mas toda vez que olho para aquela janela vejo ele, acordando cedo, fazendo o café, acordando sua esposa, saindo com a caixa de ferramentas nas mãos e a mochila nas costas.
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O prédio da frente
Short StoryUma história observada, sempre, de um único ângulo, sem nenhuma certeza, apenas achismos de um atento observador. Não acredite em tudo que está lendo.