Dona Maria

62 4 8
                                    

Provavelmente se você fosse um morador do bairro, você conheceria a Dona Maria. Uma senhora adorada por todos, ministra da eucaristia, dois filhos, ambos médicos, educada, sua alegria cativava qualquer um que a visse andando pela rua.

Ela era conhecida pelos jantares paroquiais e ações solidárias da região, todos a adoravam, chegaram até fazer uma homenagem à ela com um cartaz na frente da igreja com a seguinte frase: "Que a vida de Dona Maria siga por mais cem anos".

Quem via àquela mulher, de fato, a adorava, chegavam a chamá-la de Madre Teresa. Eu sempre desconfiei daquela bondade toda. Nunca acreditei que ela seria essa mulher tão próxima de Deus e de que sua vida era perfeita.

Não existe apenas bondade, uma pessoa não é feita apenas de coisas boas, ela é construída do que há de melhor e pior da sua natureza. Todo ser humano tem seu lado sombrio, diabólico, que quase ninguém conhece, que fica escondido nos pensamentos, que aparece no meio da noite e te assusta.

Em um dia qualquer desses, havia um panfleto dentro do elevador com uma foto dela (Dona Maria) e do seu marido sobre um encontro de casais que eles fariam para comemorar os 50 anos de casado e da abundância na fé. O cartaz puxava tanta sardinha para a senhora que estava escrito "Dona Maria e seu esposo te convida para uma formação de casal em comemoração aos seus 50 anos". O senhorzinho não passa de marido da Dona Maria, ele nem sequer tem o próprio nome escrito na tal comemoração.

Depois daquele dia, comecei a observar mais atentamente o apartamento. Eles ficavam no segundo andar em um apartamento enorme que tinha duas colunas bem no centro da sala de estar. Tudo muito bem decorado e arrumado. Trabalhava para a família duas senhoras negras.

Quase todo final de semana eles promoviam jantares com o padre da igreja e alguns convidados, acredito que paroquianos. Inclusive essas mesmas pessoas estavam no dia em que comemoraram a formatura dos filhos em medicina. Lembro que eu ainda não tinha percebido este apartamento, mas a grandiosidade do evento me chamou a atenção.

E foi naquele mesmo dia que vi um homem se atracando com uma mulher na cozinha, com o passar dos tempos, percebi que aquele mesmo homem era o que sempre fazia as orações na hora das refeições e que acidentalmente também se vestia com uma batina preta que ia até o chão, sapatos muito bem engraxados e cabelos arrumados.

Naquela noite, pude perceber que haveriam mais mentiras para serem descobertas. Eu obviamente não tinha um terço do que eles tinham, a minha única companhia era um vaso de flores mortas, minha poltrona almofadada que já estava gasta e eu pudia sentir as madeiras em minhas costas e a minha caneca de café sem açúcar que vinha acompanhada de saudade.

Alguns meses depois, em um belo dia, percebi alguns comportamentos que não condiziam com a conduta benevolente de Dona Maria.

Era sexta-feira, haveria um jantar grande, as duas empregadas tinham ficado até à noite naquele dia para poder servir os convidados. Dona Maria estava na cozinha experimentando as comidas que seriam servidas, até que aparentemente não gostou de algo, chamou uma de suas empregadas e pediu para que ela experimentasse, logo em seguida gritou com a mulher e lhe deu um tapa no rosto, pegou a panela e jogou toda a comida no lixo.

Ali estava a verdadeira Dona Maria, senhorinha inofensiva e bondosa da igreja que ajuda os casais e os mais necessitados.

O jantar aconteceu.

Em um certo momento da noite, chamou as empregadas e todos as aplaudiram. Provavelmente elogiando e as agradecendo pelo empenho doado, certamente ninguém soube do que aconteceu.

Confesso que naquele dia, eu tive vontade de subir naquele apartamento e contar o que tinha visto. Provavelmente a empregada não comentaria nada com ninguém.

Algumas semanas depois, Dona Maria estava toda arrumada com malas na sala, parecia que iria viajar. Seu marido ficou em casa, não foi junto com ela. Aparentemente as empregadas também tinham sido dispensadas aquela semana do trabalho pelo patrão.

Era noite, lá pelas nove, o marido de Dona Maria, um senhor que aparentava seus 68 anos, estava na sala com mais dois amigos de sua idade, até que algumas garotas bem mais novas do que eles chegaram, achei que no começo poderia ser apenas mais uma das festas que a família dava, mas não, dessa vez a festa era diferente, e não haveria uma oração na hora da refeição.

Parecia que o marido de Dona Maria não era satisfeito com o casamento e precisava de dose extra de ânimo para conviver com a esposa.

Inclusive fico me perguntando o que move o homem à traição? Por que aquele tem em seus braços insistentemente faz de tudo para jogar fora? Se ele soubesse a dor da partida, se eu pudesse comemorar os meus 50 anos de casado. Se eu pudesse eu trocaria todo o resto de vida que tenho por um mísera minuto com a minha esposa novamente, só para me despedir. Eu nunca tive olhos para outra mulher, nunca imaginei trocá-la ou tirar vantagem, eu só queria ter mais tempo com ela. E ao olhar aquele homem coadjuvante perante à esposa, mas que tornava-se protagonista pelas costas dela, me fez entender as injustiças da vida.

Após o período fora, em uma tarde, a querida Dona Maria chegou em sua casa, foi recebida pelo marido e alguns amigos, uma festinha particular foi promovida para recebê-la. Lá estavam o padre e alguns convidados.

Naquele mesmo dia, no fim da noite, enquanto guardava suas coisas coisas, um brinco caiu debaixo de sua cabeceira. Ela se apoiou na cama, dobrou os joelhos, puxou um pouco o vestido pra cima e agachou. Ao se levantar uma surpresa, Dona Maria estava com um preservativo nas mãos. Não demorou nem trinta segundos, ela foi até a janela e o arremessou na rua. Voltou para a beira da cama, colocou suas mãos sobre seus cabelos loiros e parecia estar atordoada, que tinha tomado um soco na boca do estômago.

Após alguns minutos, o marido entra no quarto e lhe dá um beijo, mas daqueles bem apaixonados. Nada aconteceu, nenhuma briga, nenhuma fala, nenhuma expressão, apenas o silêncio de uma mulher.

As coisas continuaram normais pelos próximos dois meses, as mesmas rotinas de sempre.

Até que haveria uma festa da igreja, Dona Maria era a representante do bairro, panfletos foram colocados novamente dentro do elevador, convidando para a festa que daria comida aos moradores de rua. Mais um ato nobre da senhorinha.

Foi uma semana intensa, um entra e sai constante até a ação beneficente.

Em um certo momento, um pouco antes da comida ser finalizada, Dona Maria ficou sozinha na cozinha, e eu pude ver, de maneira clara, três cusparadas nas sopas e mais uma mexidinha. Ela finalizou a quentinha com o seu toque especial, o tempero amargo da vida de mentira.

Dona Maria certamente não iria para o céu, caso exista um céu, ela não teria espaço nele.

Minha mãe toda noite lia uma passagem da bíblia para nós, depois rezávamos o Pai Nosso, a Ave-Maria e a oração de São Miguel Arcanjo. O céu que minha mãe nos contava era feito para as pessoas boas, de bom coração.

Aquele casal não vivia a vida que demonstravam. Era tudo uma grande mentira, uma espetacularização. Me perguntei se os 50 anos teriam sido assim, ou se foi a partir de algum momento, será que eles um dia se amaram? Existia amor naquela casa?

Dona Maria não passava de uma mulher amarga e traída que maltratava suas empregadas e cuspia na comida dos pobres. Seu marido, se um dia a amou, não pude vê-lo pela janela.

Mas a ação beneficente foi um sucesso.

O prédio da frenteOnde histórias criam vida. Descubra agora