Vou começar pela primeira história que me chamou a atenção, e fez tudo isto acontecer: a festa de aniversário do João. Até aqui, eu não tinha percebido como o prédio da frente era movimentado, eu já não tinha televisão, não sabia o que acontecia no mundo e na política. Mas depois da festa do João, percebi que não precisaria de televisão ou jornal para me ocupar.
Isto foi mais ou menos há 3 anos, eu já estava sozinho, minha flor já estava morta e meu troféus juntavam poeira.
Naquele dia, eu tinha ido dormir cedo, mas o caminhão do bombeiro me acordou, perdi o sono e não consegui continuar, então eu decidi pegar a minha poltrona e sentar na janela, a procura de algo, talvez fosse o destino me mostrando que ali estaria o meu maior passatempo.
Peguei meu café, dois biscoitinhos para molhar e observei. Logo vi no apartamento da frente uma festa que tinha mais ou menos umas 10 pessoas.
Era sexta-feira e todos estavam bem arrumados, dali eu via a sala de estar com os docinhos. Tinha brigadeiro, beijinho, coxinha e pastelzinho. De bônus um cachorro quente que parecia muito gostoso. João completava seus 7 anos.
Tudo começou com uma briga que parecia os pais de João dentro do quarto, enquanto toda a família estava reunida na sala, os dois entraram no quarto, e começaram a brigar. A mãe de João começou a chorar e o pai saiu. Foi até a sala de estar e fez gestos de que talvez ela estivesse indisposta mas que logo voltaria para a festa.
João estava com mais duas crianças, uma de 5 e outra de 10, eles brincavam em um tabuleiro, enquanto dois senhores de terno e de bigode estavam na frente da televisão, vendo o jornal.
A campainha tocou, uma mulher chegou sem acompanhante segurando em uma de suas mãos uma garrafa e na outra um presente para o menino João. Assim que ela entregou o presente ao garoto e o beijou, cumprimentou o pai de João com um abraço extremamente apertado e um singelo aperto de mãos a esposa. Pediu para ir ao banheiro colocando as mãos sobre a barriga e cruzando um pouco as pernas. O pai de João mostrou o caminho do banheiro.
Alguns minutos se passaram, e os dois voltaram, era nítida a desconfiança da mãe de João com à moça que acabara de chegar. Poderia ela ser a mãe de João e ex-esposa do homem?
O pai de João aparentava seus 40 anos e a moça uns 28. Ela estava muito bem vestida, de salto altos, unhas vermelhas, pulseira de ouro, brincos longos e cabelo feito.
Algumas horas se passaram, cantaram o parabéns do menino João, ele estava feliz, ganhou inúmeros presentes, mais presentes do que eu ganhei na vida em apenas um aniversário, e João nem era uma criança tão bonita assim para tantos presentes.
No meu aniversário de 8 anos, meu pai que estava embriagado chegou no meio do parabéns com uma garrafa na mão, gritou com a minha mãe e caiu sobre a mesa do bolo, tendo ali um infarto que culminou sua morte dias depois. Nunca entendi porquê as pessoas comemoram seus aniversários felizes achando que nada de mau irá acontecer naquele dia, afinal é um dia como qualquer outro, onde coisas boas e ruins podem acontecer.
Mas enfim, em um outro momento da festa, o pai de João entrou no quarto, sentou na beira da cama, abriu a janela, acendeu um cigarro e ficou ali parado, reflexivo.
Até que uma pessoa entrou no quarto, não deu pra ver quem era, pois assim que entrou, o pai de João fechou a cortina, e eu pude ver apenas pelas sombras que os dois estavam se aproximando. Olhei para a outra janela, a da sala, e não vi a mãe de João nem a moça, só tinha os dois velhos vendo televisão, as crianças brincando e umas senhoras fofocando no canto da mesa. Onde estavam as duas mulheres? Por que aquelas pessoas não estavam percebendo a falta deles?
As duas sombras pareciam que estavam conversando, sentados na cama, um de frente para o outro, até que um dos dois se aproximou e um beijo aconteceu. E uma das pessoas empurrou a outra, fez um sinal de negação ao beijo e se levantou.
As cortinas novamente se abriram.
E lá estava o pai de João acendendo outro cigarro. Ele abriu o primeiro botão da camisa e passou a mão nos cabelos, parecia preocupado com o que tinha acabado de acontecer.
Enquanto isso, olho para a sala e vejo àquela moça se despedindo do garoto e das pessoas que ali estavam, de forma muito rápida e com a cabeça inclinada para baixo, parecia que estava envergonhada ou com pressa.
A mãe de João acompanhou a moça até a porta que falou algo em seu ouvido, ela instantaneamente se apavorou, abriu a porta e sem nenhuma palavra se despediu.
Uma semana após o aniversário, em uma outra noite mal dormida, vi que no quarto do casal havia uma movimentação, novamente eles estavam brigando. Mas desta vez parecia ser uma briga séria, a mulher começou a pegar as roupas do marido e colocá-las em uma mala.
Uma separação estava por vir e o aniversário do João, assim como eu, trouxe grandes marcas para todos. O garoto naquela noite talvez tenha entendido que aniversários não significam datas com certeza de felicidade. E que seu pai teria deixado uma marca na sua vida.
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O prédio da frente
Short StoryUma história observada, sempre, de um único ângulo, sem nenhuma certeza, apenas achismos de um atento observador. Não acredite em tudo que está lendo.