Capítulo 04

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– E cadê seu pai? – Perguntou o Boneco para Gustavo no dia seguinte. Boneco era novo na comunidade e não conhecia bem a galera. – Você tem pai, não tem?

Depois da merenda da escola, Gustavo e seus amigos tinham jogado bola perto do posto de saúde e agora estavam sentados na calçada, olhando para a rua e conversando.

– O p-pai dele tá p-p-preso. – Respondeu o Tiagago, que uns dois anos antes, quando ele mesmo era novo na área, tinha recebido o carinhoso apelido de Tiago Gago, que acabou encurtando com o tempo.

– Teu pai é presidiário? O que que ele fez? – Falou o Boneco, todo animado.

– Ô viado! – Exclamou o Zarolho, dando um tapa na cabeça do novato. – Tem que respeitar, pô. Tá de putanhagem?

– O meu pai morreu ali na esquina, em frente ao bar. – Era o Gordão falando, com o olhar perdido na direção do referido lugar. – Um tiro na cabeça. Meu primo falou que ele tava devendo na boca. Não sei. No outro dia, ainda tinha sangue chão... era bem cedo, não tinha ninguém na rua... eu mijei no sangue dele.

– Meu pai deu mole. – Era o Gustavo falando. – Não sei direito como foi, faz tempo, mas ouvi dizer que ele e outros caras tinham combinado de assaltar um sítio lá na rodovia. Só que eles não esperaram o dono do sítio sair. Parece que o homem ia para a Igreja todo domingo, mas ainda não tinha saído quando a turma do meu pai apareceu. O velho lá deu uns tiros e ligou para o filho, que era policial. O cana chegou e encontrou meu pai no chão, sangrando feito porco. Não sei como que o policial não matou ele... eu matava.

– E aqueles cuzões do campinho? O que vamos fazer com eles? – Era o Zarolho, tentando mudar de assunto.

– Deixa comigo. Eu sei o que vou fazer. – Disse o Gustavo ficando de pé e indo embora. E fez.

No dia seguinte, quando os garotos chegaram no campinho da rodovia, encontraram o Gustavo jogando bola com os marmanjos e alguns adultos. Gustavo os viu chegando e foi falar com eles.

– A gente já tá saindo – falou batendo com a mão espalmada nas mãos dos outros garotos.

O Bengala, chefe da boca, estava lá no campo. O jogo parou e ficaram esperando Gustavo voltar. O garoto se despediu dos amigos e correu de volta para o meio do campo. Bengala saiu andando por uma trilha, que subia por um morro do lado da comunidade e todo aquele pessoal o seguiu.

Naquela noite o Gordão e o Boneco viram o Gustavo na entrada da boca da Fumaça. O garoto segurava um revólver como se fosse um brinquedo. Estava de guarda naquela noite, como havia estado na noite anterior, sua primeira vez a serviço do Bengala, quando mostrou que sabia atirar e tinha sangue-frio suficiente ao matar um inocente cachorro que estava procurando algo para comer numa lixeira ali perto; e como esteve por várias noites e dias nos anos seguintes.

Não voltou para a escola e não voltou para os amigos. Também não voltou para o barraco em que vivera mais sozinho que com a mãe. Às vezes, ia até a praça do centro para entregar encomendas e não para pedir trocados.

O Gordão sumiu da área. Talvez tenha se mudado, ninguém sabia dele. O Zarolho virou crente e depois de uns anos virou o pastor Eduardo, mais ou menos na época que o Boneco foi trabalhar na boca também.

Um tempo depois o Lumbriga, que na cabeça de Gustavo era o "dentes-podres", brigou feio com o Boneco. O Gustavo era influente no grupo e o Lumbriga acabou desaparecendo.

Uns meses depois do sumiço do Lumbriga, a polícia invadiu a comunidade. O Tiagago, que nessa época era chamado só de Gago mesmo e não tinha ligação nenhuma com a boca, acabou morrendo na frente de um bar, atravessado por "balas perdidas" disparadas pelos policiais. O Gustavo viu e, sem esperar os policiais chegarem mais perto, derrubou um dos canas. Deu mole. Os demais policiais se organizaram e o cercaram.

No último jornal da TV daquela noite, quando estava terminando de se arrumar para ir trabalhar a madrugada toda como padeiro numa das maiores padarias da capital do estado, o João de Moraes, antigo Gordão da comunidade da Fumaça, viu na tevê a prisão de alguém que não via desde que se mudara da comunidade para morar na casa da tia, o famoso Espera-Maré, junto com outros traficantes.

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⏰ Última atualização: Jun 28, 2020 ⏰

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Espera-Maré (Conto em 4 capítulos - Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora