Capítulo 2

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Uns dois dias depois, a tia de Ítalo o chamou, atrapalhando a brincadeira de futebol deles. Açucena achou que não tinha nada de errado em ir com ele até onde a tia estava, ao lado da porta da cozinha dela.

— A Bisa piorou, Ítalo — ela disse de uma vez.

Açucena viu a alegria fugir do rosto do amigo imediatamente. Ele ficou agitado e parecia que lágrimas queriam invadir seus olhos.

— Ela vai morrer? — ele perguntou com voz embargada.

A tia o abraçou.

— Não. Não vai. Não vai porque Nhandejáry está com ela, cuidando dela. Vem aqui dentro que preciso te mostrar uma coisa.

O garoto entrou com a tia. Como não convidaram Açucena e o irmão, eles foram para casa.

Somente à tarde viram Ítalo novamente. Ele estava sentado em um tronco de uma árvore caída e tinha a cabeça entre as mãos. Açucena não sabia se ia aonde ele estava ou não. Mas não precisou se decidir.

Ele a viu e chamou. Quando a menina se aproximou ele perguntou:

— Você sabe chegar na Missão sem o ônibus da escola?

A Missão era uma organização não governamental evangélica, que ficava perto da aldeia.

— Claro que sei. E quem não sabe?

— Eu não sei — ele disse. — E preciso ir lá.

Só então ela se lembrou de onde o conhecia. Ítalo era seu colega de classe no início do ano, no 5º ano, antes das aulas pararem. Ele tinha vindo de uma outra aldeia do sul do estado. Então entendeu por que ele não sabia chegar na Missão se não fosse de ônibus. Todas as crianças da aldeia iam para aquela escola de ônibus.

— Eu sei chegar. É tranquilo — ela disse. — Mas há barreiras sanitárias em todas as entradas e saídas da aldeia, por conta da doença. Não tem como criança atravessar. E se você está querendo ir ver a sua bisavó no hospital da Missão, isso não é possível. Ninguém entra no hospital na parte onde estão os pacientes da pandemia. É o que a minha mãe me disse.

— E você não conhece uma forma de passarmos sem sermos vistos? Não é para ir ver a Bisa não. Preciso ir ao Bosquinho da Missão – o Bosquinho é uma pequena reserva de floresta nativa que fica dentro do espaço destinado à Missão.

— E por que você tem que ir lá? — ela perguntou.

— A minha mãe mandou, pelo celular, um vídeo para minha tia, onde a Bisa ensina como fazer um remédio que os antigos usaram para combater a gripe trazida pelos Karaí, e a tuberculose também, doenças que assolaram as aldeias no passado. Ela falou para a tia fazer o remédio e enviar para ela através da enfermeira da aldeia que trabalha no hospital. Disse que é o que vai salvar os infectados. Só que na receita precisa de uma planta chamada petyhũ. A tia não conhece essa planta, mas eu conheço, porque já ajudei a Bisa a preparar esse remédio. A Bisa disse que essa planta está extinta na aldeia de Dourados, mas tem no Bosquinho da Missão. Eu preciso ir lá ver se encontro.

Açucena não acreditava que houvesse um remédio para a doença, ainda que fosse remédio tradicional do seu povo. Tanta gente morrendo no mundo, se houvesse algo assim, alguém já teria falado. Mas não teve coragem de acabar com a esperança do garoto.

— Olha, as barreiras começam às seis horas da manhã — disse Açucena. — Se formos antes dessa hora a gente consegue passar, eu acho. Podemos nos esgueirar pelo mato da margem do córrego e ao chegar perto da Missão atravessar e entrar pelo fundo da Missão.

E foi assim que fizeram. Planejaram tudo e deixaram as coisas prontas para saírem antes do Sol nascer no outro dia. A intenção era ir e voltar antes do meio-dia ou, no mais tardar, duas horas da tarde. O que daria tempo para Irani preparar a medicação e enviar para os parentes no hospital, naquela noite.


Notas de rodapé:

1- Nhandejáry - Nosso Senhor, Nosso Dono

2- Karaí – não-indígena. Branco. 


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O último valeOnde histórias criam vida. Descubra agora