❀ Capítulo 2 | O Som do Silêncio ❀
As coisas começaram a mudar mais rápido que ele havia imaginado. Aliás, Liam nunca imaginara que tudo que aconteceu em seguida fosse de fato acontecer. É fato que não se pode prever o próprio futuro; mas, às vezes, cria-se expectativas demais sobre ele. O garoto esperava que os pais não divorciassem – ele não sabia que havia mais questões envolvendo-os, e o caso do filho mais velho não foi o único empecilho. Liam também esperava que Jonathan finalmente visse o que estava fazendo consigo mesmo e com sua família.
Liam iludiu-se. Tudo aconteceu de uma vez, e o destino golpeou-o sem misericórdia. Os pais anunciaram a separação. A partir desse dia, as coisas começaram a ficar ainda mais difíceis. A casa a qual moravam fora colocada à venda. Ao ficar sabendo daquilo, Jonathan saiu de casa. Mesmo anunciando a separação, os pais continuaram brigando. Aquilo era insuportável para Liam - e nem sempre Marcela podia estar com ele.
A primeira crise veio quando o garoto tinha treze anos. Marcela estava na faculdade e um casal havia acabado de olhar a casa para comprar. Liam estava em seu quarto quando os pais começaram a brigar, culpando um ao outro de coisas que o menino não entendia. O que estava acontecendo? Eles nunca havia discutido tanto desde que Liam era pequeno. Ele não compreendia. De súbito, começou a pensar coisas sobre as quais não conseguiu ter controle: e se eles estavam brigando por causa dele? E se fosse Liam a causa de toda aquela confusão? Jonathan se revoltara por causa dele? Será que os pais iam...devolvê-lo?
Todos aqueles pensamentos começaram apenas como perguntas aleatórias em sua cabeça. Depois, seu coração começou a acelerar e uma mão invisível apertou a sua garganta. Sua respiração falha começou a ressoar cada vez mais alto sobre os gritos dos pais na sala de estar. De repente, achou que fosse morrer.
Liam gritou. A sala de estar ficou em silêncio e, no instante seguinte, os pais estavam em seu quarto com uma expressão espantada. Mas o menino não se importou e continuou chorando, sentindo cada vez mais o ar saindo de seus pulmões. A mãe achou que ele estivesse tendo um ataque cardíaco e disse ao pai que precisava levá-lo ao hospital. Liam negou de imediato. Sua boca estava seca e ele mal conseguia falar, por isso, balançou a cabeça freneticamente.
O menino só se acalmou quando Marcela chegou. Ele sabia que a irmã não o deixaria sozinho.
❀❀❀
Ele não sentiu mais aquilo durante um bom tempo. Depois da estranha crise, os pais perceberam o quanto aquele conflito estava afetando não apenas o filho mais novo, mas toda a família. As coisas finalmente começaram a fluir: a casa foi vendida e Liam foi morar com a mãe e Marcela em um pequeno apartamento. O pai alugaria um apartamento próximo ao trabalho e visitaria os filhos sempre que pudesse. Ele nunca havia morado em um apartamento antes e, a princípio, sentiu muita falta de um jardim e de uma paisagem menos monótona que a janela do vizinho. Ainda sim, havia coisas as quais Liam começou a gostar mais: agora, ele dividia o quarto com a irmã - e isso não era uma desvantagem para ele. Sua nova escola era próxima e havia uma lanchonete bem embaixo do prédio. Não havia mais brigas e, à tarde, a casa pertencia apenas aos dois. Marcela e Liam aproveitavam para ver filmes, jogar videogame, fazer guerra de travesseiros e conversar sobre a vida.
Apesar de sentir falta da vida anterior, Liam sentia-e bem - até o primeiro ano desde que tudo mudou.
Ele não sabia dizer quando tudo começou a piorar dentro dele. Talvez fosse o ambiente tóxico da nova escola. Talvez fosse a falta que Marcela fazia quando ela começou a trabalhar durante as tardes. Ou, quem sabe, fosse o namorado novo de sua mãe - desde o primeiro momento em que foram apresentados, o garoto não gostou nada dele. Isso foi motivo de grande atrito entre ele e a mãe, que não admitia a falta de cortesia do filho diante o namorado. Liam estava ciente de que não se tratava de ciúmes - ele simplesmente não foi com a cara daquele homem.
Liam nunca havia sido motivo de atrito na família. Nunca havia brigado com a mãe a ponto de ficarem dias sem se falar - até que ela convidou o namorado para almoçar em sua casa em uma sexta-feira. Marcela estava trabalhando e Liam havia acabado de chegar da escola. O homem estava sentado no sofá da sala quando o garoto abriu a porta do apartamento.
O novo namorado de sua mãe olhou em sua direção. Ele tinha cabelos grisalhos e uma barba rala, além de um rosto quadrado e nariz largo. Liam, com fones de ouvido, capuz e a cara fechada, bateu a porta e fingiu que não tinha visto nenhum intruso em sua casa.
- Liam, cumprimente Antônio - sua mãe apareceu no corredor.
O garoto parou, tirando a mochila das costas e olhando para trás. Ainda com os fones no ouvido e o rosto emburrado, ele murmurou:
- Oi.
Mal ouviu a resposta do homem, pois logo virou-se novamente e marchou para seu quarto. Ouviu a porta se abrir logo quando fora fechada. A mãe adentrou o aposento e olhou para Liam com uma expressão de cólera.
- Eu espero que tenha mais educação na próxima vez! - ela vociferou, arrancando os fones de ouvido dos ouvidos do menino. - Está me ouvindo?
- Estou! - Liam não pretendia gritar com a mãe, mas não conseguiu evitar.
- Não grite comigo! - a mãe disse mais alto. - Não estou te entendendo, Liam. Faço tudo por você, e você chega sempre com essa cara emburrada e ignora quem quer que esteja à sua frente!
- Eu já disse - Liam murmurou. - Eu não gosto dele.
- Você não tem que gostar de nada, rapaz - a mãe estava vermelha. - Está de castigo! Sem computador por duas semanas.
A mulher virou-se para sair do quarto, mas Liam gritou:
- Não! Eu preciso fazer um trabalho da escola.
- Se vire, Liam - a mãe falou no corredor. - Você pediu por isso.
O garoto, que não estava tendo um bom dia desde que acordara cedo para ir ao colégio, sentiu seu peito comprimir e a garganta se fechar. Lançou a mochila na cadeira e jogou-se no tapete do quarto, sentindo as lágrimas teimosas escapando de seus olhos. Não era apenas Antônio que o irritava. Irritava-o a forma como a mãe parecia tão distante; irritava-o o fato de Marcela estar trabalhando tanto a ponto de deixá-lo sozinho por tantas horas. Não... Não era de fato uma irritação. Liam pensava estar apenas irritado, mas era uma tristeza profunda que começava a dominá-lo aos poucos. Sentia-se cada vez mais solitário e frustrado com tudo: a escola, a família, os antigos amigos - amigos estes que não eram mais tão amigos após a mudança de escola.
A adolescência podia ser um tanto cruel. Os adultos pareciam se esquecer de que um dia já passaram por essa fase. Ninguém dava um manual de instruções orientando a como lidar com tantos sentimentos e mudanças - seja ela mental ou corporal. A escola não se importava. A sociedade não se importava. Restava-se apenas descobrir por si mesmo e aprender a lidar com tudo.
Chegara um momento em que Liam não conseguia lidar com nada - sobretudo com todos os pensamentos que insistiam em atravessá-lo toda vez que despertava pela manhã. Embriagado por um torpor incompreensível, ele não conseguia se lembrar exatamente quando teve a ideia descontar suas dores em seu corpo. Começara com um inofensivo arranhar de braço na aula de matemática. Depois, pegando a lâmina de barbear de Marcela (sim, mulheres usam lâminas de barbear) teve a ideia idiota de arrancar os pelos do braço. Arrancara não só os pelos, mas a própria pele. A ardência, por mais incômoda que fosse, tirava-lhe o foco do que estava sentindo além do corpo.
Seu corpo começou a pedir mais por aquela dor perversa, e o garoto não conseguia fazer nada a não ser obedecê-lo. Liam não se orgulhava de nada daquilo. Mas a dor, as cicatrizes, suas atitudes e motivos eram tão subjetivos que passava despercebido por todos. Era apenas Liam e Liam. Apenas um garoto de catorze anos com seus fones de ouvido, livros de fantasia e um olhar débil.
Subjetivo demais para que o ouvissem além de sua voz e sorriso vazio.
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O Som do Silêncio
Jugendliteratur2 | Em meio a abruptas mudanças de vida e novos sentimentos, William se vê diante a uma luta incansável contra a depressão e a ansiedade. Apesar disso, Liam sempre tentava mostrar-se forte o suficiente para ocultar suas dores. Mas algo - mais especi...