Capítulo 3 - Eros

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Desde o dia três de abril de mil novecentos e setenta e três, quando o mundo pôde assistir em televisões preto e branco a primeira ligação pelo aparelho nomeado "telefone celular", Wonwoo não perdeu tempo. Foi um dos primeiros a adquirir tal objeto e muito empenhadamente deixava cair em cada oportunidade que tinha, esperando ansiosamente o momento.

Veja bem, a imortalidade não é fácil. Ver sua família, seus amigos, seus amantes envelhecerem e partirem, te deixando sozinho nesse enorme mundo para que você recomeçasse todo aquele ciclo de conhecer, se apaixonar e ver morrer infinitivamente era cansativo, para dizer o mínimo.

Desistiu mil vezes durante todos esses séculos, quando amou pessoas que nunca falaram essa frase, quando teve seu coração partido em três mil pedaços tão pequenos que pensou que nunca o teria por inteiro outra vez, mas o eterno jovem descobriu que essa é a verdadeira graça da vida. Você pode escolher derrubar seu celular em uma avenida muito movimentada e esperar dias miseráveis parado no mesmo lugar, encarando o aparelho esperando que alguém diga aquelas benditas palavras ou você pode simplesmente viver — claro que ocasionalmente deixando-o despretensiosamente cair de seu bolso. Admite que era o que fazia, mas o segredo é não parar sua vida por isso, é derrubar o celular e não esperar que te devolvam, abaixe-se e pegue-o, viaje, aprenda, explore e quem sabe um dia, quando você tenha a absoluta certeza que seu celular está bem guardado no bolso traseiro de sua calça alguém te toque o ombro dizendo que você deixou o objeto cair.

E foi assim que aconteceu com Wonwoo. Gostava de andar pelo Louvre com as mãos dentro de seu bolso, tocando levemente em seu smartphone enquanto guiava os grupos de turistas, em sua maioria asiáticos. Mas aquele grupo de quinze pessoas que estava guiando tinha algo de diferente. O garoto alto, Mingyu, continuava fazendo perguntas para o amigo traduzir do coreano para o mandarim mesmo que Wonwoo já tivesse mostrado que conhecia ambos idiomas. Mas o que o animava eram exatamente suas perguntas. Diferente dos outros turistas do grupo, o jovem fazia seu amigo questionar sobre a arte e a história por trás, coisa que cativou o coração de Wonwoo rapidamente.

Estavam na ala Denon em frente a escultura favorita do guia. Psique reanimada pelo beijo do Amor era de longe a única que realmente conseguia tocar sua alma. Essa era a representação do amor, não Vênus de Milo. Aqui podia ver a beleza, a tristeza combinadas ao esplendor do sentimento naquele abraço talhado no mármore. Explicou o básico para o grupo, o nome do artista e o nome da obra, vendo-os dispersos, ansiosos pelas fotos. Aguardava pacientemente ao lado da peça de mármore.

— Mingyu! Eu estou tentando tirar uma foto aqui, vai perguntar você! — escutou o jovem com o colante de identificação escrito 'MingHao Xu' reclamar com o amigo mais alto em coreano antes de revirar os olhos e se aproximarem de Wonwoo. — Então, senhor guia, quem são esses dois? — perguntou apontando para a estátua em frente.

— Esses são Eros, ou Cupido, e essa é sua amada, Psique — respondeu sorrindo, amava falar sobre aquela obra e se sentia agradecido quando perguntavam. — Diz a lenda que a jovem era terrivelmente bela, despertando a raiva da deusa Afrodite. — resistiu a vontade de revirar os olhos cada vez que mencionava esse nome. — O plano era simples: fazer com que a jovem se apaixonasse pelo mais feio e mais terrível de todos os homens, por isso ordenou que seu filho, Eros, a atingisse com uma de suas flechas, mas o deus acabou se ferindo e se apaixonando por Psique no processo.

Observou como os olhos escuros de Mingyu brilhavam contra a luz do sol que entrava naquela sala, seu olhar fixo na estátua, em cada traço e curva da obra de arte. Seu olhar carregava tanta intensidade que por breves segundos Wonwoo desejou ter alguém que o olhasse daquela forma.

Pigarreou tentando afastar aquele tipo de pensamento de sua mente, chamando atenção do grupo para que seguissem para a próxima ala. Tomou a frente, esperando o grupo se reunir, não deixando de notar que Mingyu e seus amigos tinham ficado para trás.

Caminharam para a próxima ala do Louvre, com Wonwoo explicando mecanicamente sobre as peças que encontravam no caminho. Apesar de muita gente encarar a rotina como algo tedioso, o eterno jovem conseguia ver a beleza na mesmice, a segurança e o conforto de estar em um território já conhecido por si á anos — muitos anos, na verdade, visto que a cada 100 anos, Wonwoo voltava para trabalhar no Louvre, ficava 10 anos e depois mudava de emprego novamente para não levantar suspeitas.

Estava quase chegando na obra Vitória de Samotrácia, estátua que ficava na escada a caminho do primeiro piso do Louvre, quando parou para checar se todo o grupo estava o acompanhando, notando que Mingyu e seus amigos se aproximavam com passos apressados.

— Certo pessoal, aqui temos a estátua em homenagem a deusa da Vitória, cujos pedaços foram descobertos em 1863 nas ruínas do Santuário dos grandes deuses de Samotrácia. — disse virando-se para a obra imponente mesmo sem braços e a própria cabeça da deusa. Ali nas escadarias marcava o fim de sua visita guiada, onde entregaria os turistas nas mãos de outro guia que os levaria para o primeiro e segundo piso do enorme museu, seu amigo que já os esperava em frente a estátua de mármore. — Nossa visita termina aqui, nosso guia Junhui Wen os guiará pelos próximos andares. Foi um prazer guia-los até aqui e espero que sigam desfrutando o Louvre.

Com reverências educadas do grupo, afastou-se dos turistas descendo as escadas em direção ao subsolo. Essa era a segunda visita do dia e de acordo com seus cálculos estava perto da sua pausa para o almoço. Colocou a mão no bolso traseiro, buscando seu celular para verificar as horas.

Vazio. Procurou no outro bolso e também não encontrou a característica borracha da capinha do aparelho. Não lembrava quando fora a última vez que havia sentido seu celular em seu bolso, mas voltou seus olhos para o chão procurando encontra-lo caso tivesse caído por ali. Mas não precisou buscar muito.

Os passos rápidos de Mingyu ecoaram na sua cabeça, mesmo que o museu estivesse cheio, era como se o mundo tivesse parado e Mingyu era o único ser humano que tinha a permissão de se mover. Seu coração batia violentamente contra o seu peito quando virou-se para encarar o jovem correndo com o aparelho preto em sua mão.

Esse era o momento? Mingyu, o turista, seria sua alma gêmea? Perguntas rodavam por sua cabeça. e a ansiedade tomava conta de si. Esperou por esse momento durante muitos anos.

Ofegante, Mingyu parou na sua frente. A camisa branca levemente amassada por baixo do cardigã marrom. O jovem sorriu e Wonwoo sentiu como se tivesse sido perfurado pelas flechas do próprio Eros. Era sem dúvida, o sorriso mais bonito que ja tinha visto em todos os seus anos de vida. Os dentes brancos e alinhados podiam iluminar o ambiente mais escuro e aquecer o coração mais frio de todos.

E foi nesse momento que Wonwoo ouviu aquelas palavras.

— Moço, você deixou cair o seu celular. 

Elos; sobre almas gêmeas e maldiçõesOnde histórias criam vida. Descubra agora