IV. A gentileza

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A vida continuou, como de costume. Sem se importar se chegou a tempo à estação,  se teve que pegar o próximo trem. Lidar com a eterna dúvida de como teria sido se não o tivesse perdido. Sempre uma escolha fadada a uma consequência. A vida adulta, em síntese.

- Preciso falar com você.

A garota ouviu a voz dele, às suas costas. Estava no intervalo com uma amiga. Era o momento exato em que caminhava até o lixo para jogar o papel do lanche. Ele passava por ali e, tendo-a visto, aproximou-se sem que percebesse. Não lhe bastava ouvir sua voz, tão próximo e tão repentina, tinha que haver também o toque? Sutil, como sempre. O dedo indicador da mão dele lhe tocava levemente na parte inferior das costas, próximo à cintura, causando-lhe um arrepio. Não poderia tocá-la no braço, ou nos ombros? Por que precisava ser um gesto tão sutil e ao mesmo tempo tão tentador? Exatamente idêntico àquele dia, em que a mesma mão lhe tocava a perna.

- Claro. - respondeu desnorteada.

Os encontros continuaram, assim como a vida. Ele se casou e se tornou pai. Ela terminou o namoro. Na verdade, o namorado terminou, porém se arrependeu mais tarde e tentou voltar na decisão, mas já era tarde, a garota decretou o fim. Todavia, para consolo da garota, um novo professor surgiu, mais jovem e muito mais atraente fisicamente, e ainda possuía o atributo da inteligência e desenvoltura. Ela estava no lucro, afinal ganhava mais em beleza e reduzia a diferença de idade.

- Você é exatamente do jeito que eu gosto. - sussurrou enquanto a beijava.

A garota pensava que havia ganhado na loteria do amor. Ele era exatamente do jeito que admirava uma beleza masculina. Era de suspirar! E quando o viu com sua jaqueta de couro, que tinha até nome, como se fosse um animal de estimação. Era como se estivesse com um astro de cinema! Sentia-se como em um filme! E foi exatamente como um filme, com a duração de uma trilogia, apenas. Já havia fila de espera. Para a sorte da garota, não era sua aluna, era apenas uma parceira de trabalho, e não precisava mais vê-lo. Não o viu, no entanto, como as notícias têm asas e voam rapidamente, logo soube que ele também seria pai, outra vez...

A garota então conseguiu um emprego melhor, mas não era na sua área de atuação. Estava feliz pelo salário, pelo ambiente de trabalho, por conhecer pessoas novas, por se sentir importante, e principalmente por conseguir ir a pé até o trabalho. Comunicou imediatamente o seu professor, pois precisavam ajustar os horários das reuniões. Ele conseguiu se adaptar à nova rotina dela, portanto estava tudo certo.

Um jovem do trabalho começou a interessá-la, e aparentemente demonstrava interesse, mas logo descobriu que estava comprometido. Desligou o botão. Próximo. Encontrou mais um rapaz interessante, este lhe deu ainda mais atenção. Bastaram dois dias para descobrir que também estava comprometido. Tornou a desligar o botão. Qual o problema dos homens?

Uma nova oportunidade de emprego surgiu, imensamente melhor, e enfim na sua área de atuação! Era a realização de um sonho! Novamente comunicou ele, seu professor. As reuniões precisavam de um novo ajuste, o que foi mais complicado. Ele não conseguiu se adaptar à nova rotina da garota. Era preciso adiar o projeto, e até modificar seu percurso. Ela continuaria sendo sua aluna, entretanto as reuniões cessariam. A garota adorava seu emprego, mas também adorava seu projeto. Uma escolha e uma consequência, o pedágio cobrado pela vida. Escolheu o emprego, porém se afastou do projeto, e dele.

Afastou-se dele pela ausência das reuniões, pelo casamento e paternidade. Começou a enxergá-lo com outro olhar, dessa vez mais crítico, e provavelmente até ferido. Passou a dar razão para o que diziam sobre ele, que não era um professor tão extraordinário como pensava, que suas atitudes fugiam completamente do ideal. Era apenas mais um professor tradicional e opressor.

Por essa razão foi muito fácil fazer uma nova escolha. Saiu com o garoto de seu novo trabalho, na véspera da prova de seu professor. Não lhe importava mais ter um bom rendimento para atrair a atenção dele, importava-se apenas com o jovem de olhos verdes, que simplesmente a hipnotizava. Era tão bonito e tão cordial, seu tom de voz brando lhe conduzia como o canto de uma sereia.

- Você tem prova amanhã?! - ele se espantava - Não acredito! Por que não me disse? Não teríamos saído hoje.

- Eu estou bem na matéria! - a garota mentiu.

O motivo de não ter dito a verdade era justamente esse: se o tivesse dito, não teriam saído. A mentira, por sua vez, foi dupla. A primeira, de que não teria problema nenhum em saírem naquele dia, a segunda de que estava bem na disciplina.

No dia seguinte, como previsto, a garota foi mal na prova. Sentiu-se culpada até rever o garoto dos olhos verdes e esquecer de tudo.

Faziam tudo juntos. Trabalhavam lado a lado, almoçavam juntos, saíam de vez em quando e trocavam mensagens quando estavam longes um do outro. Tudo isso sem um beijo sequer. Demorou um pouco para admitir que também namorava. De novo. Todavia, não conseguiu desligar o botão. A namorada era loira e bela. De novo. Ele praticamente não falava sobre ela, era como se o namoro não estivesse bem, como se houvesse esperança... Ele lhe tocou a perna, enquanto conversavam naturalmente sobre coisas aleatórias, no trabalho. De novo! Ora, como poderia? Outro toque sutil e tentador sem um real significado? Não era possível! Não poderia ser verdade...

A garota respirou fundo e decidiu ser sincera, abriu seu coração. Ela deveria saber que raramente acontecem coisas boas quando se abre um coração...

Gentileza, foi o argumento utilizado pelo jovem de olhos verdes. A gentileza que arruinou a garota inicialmente, antes de torná-la mais forte. Essa reconstrução, no entanto, necessitou de tempo. Tempo que não condizia com o semestre letivo. A garota foi reprovada, justo na matéria dele. Foi sua primeira reprovação. Não deveria significar tanto, mas significou, afinal o que é um aluno, senão a sua nota, um único número, azul ou vermelho? Azul, pela falta de ar, e vermelho, de seu sangue.

Tanta dedicação para conseguir o prestígio de seu professor... Pôde sentir a decepção dele, afinal tinha conseguido uma segunda chance que não teria sido concebida a qualquer outro aluno.

- Tente mais um pouco. - ele insistiu, acreditando em seu potencial.

Como resposta, fez que não com a cabeça, engoliu o choro e entregou a prova que era como uma sentença. Era difícil admitir que não conseguia, e principalmente que o decepcionava. Diante da reprovação ele não a veria mais com os mesmos olhos, ela sabia.

Ela o perderia, afinal. Uma escolha, sempre fadada a uma consequência. Se soubesse, jamais teria escolhido sair com o jovem dos olhos verdes, teria escolhido a prova! Não havia ganhado nada, só perdido! E a que preço? Por uma simples e enfadonha gentileza...  

SubmersoWhere stories live. Discover now