"De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade"✞ ✞
O amanhecer me encontrou ajoelhado no sacrário maculado.Tinha arrumado a sala às pressas, limpado qualquer sujeira, suor e heresia que consegui e tomado um banho demorado. Nada disso diminuiu minha culpa e minha vergonha. Passei o restante da noite em oração.
- Deus ajuda quem cedo madruga! - ouvi Martha dizer atrás de mim, não fazia idéia de quando ela tinha chegado.
Ela se aproximou e pousou a mão no meu ombro, a fitei rapidamente e seu sorriso desapareceu ao me observar.
- Padre? O senhor está bem?
Tentei me levantar mas minhas pernas não ajudaram, ele colocou as costas da mão no meu pescoço e franziu o cenho.
- O senhor está ardendo em febre, padre! - me ajudou a levantar com dificuldade - como está se sentindo?
- Não muito bem - consegui dizer forçando um sorriso. Não consegui a encarar nos olhos.
- Pois eis o que eu vou fazer - ela foi me acompanhando em direção à escada. - Vou cancelar a homilia de hoje e os outros compromissos, o senhor vai descansar.
Tentei protestar mas ela não me deu ouvido.
- E vou fazer minha canja especial pra tentar diminuir essa palidez, cruzes!
Acenti e pouco depois já estava de cama. Minha cabeça latejava e todo meu corpo doía. Com certeza não ia conseguir dormir. Mas a canja especial da Martha somada a alguns analgésicos conseguiram me derrubar e caí num sono agitado.
Sonhei com o começo de tudo. Sonhei com a noite do jantar.
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Se eu tivesse lido corretamente os sinais eu com certeza não teria ido ao jantar.
Foi um dia cheio de serviço e reuniões, mal acabava uma tarefa e duas já tomavam seu lugar. Enquanto a noite se aproximava eu diversas vezes pensei em cancelar ou remarcar o jantar, mas sempre algo me distraía eu esquecia o assunto.
No horário usual meu irmão me ligou, já me aguardava no lado de fora da igreja. Praguejei brevemente pois ainda tinha serviço acumulado. Mais uma vez pensei em desistir de ir naquela noite. Mas compromisso é compromisso. Depois eu terminava meus afazeres.
No caminho mais um revés. Um ciclista distraído bateu na lateral do carro e acabou arrancando o retrovisor do carona. Vários minutos de atraso enquanto os dois discutiam sobre seguro e compensações. Quando já estava prestes a desistir e ir embora de volta a pé, a situação se resolveu e continuamos nosso caminho.
O jantar tardio enfim aconteceu, mas parecia que uma nuvem pairava sobre nossas cabeças. Cristiano não compareceu à refeição, alegando estar sem fome e nem deu as caras para nós cumprimentar. Sua mãe tinha os olhos vermelhos enquanto fingia que tudo estava bem e Júlio não demonstrava sua jovialidade costumeira. O assunto do retorno do filho mais velho não foi discutido e jantamos a maior parte do tempo em silêncio.Durante a sobremesa eu sugeri ir até o quarto de Cristiano para ver se ele queria um pouco do sorvete caseiro e assim tentar emplacar uma conversa com ele. Minha sugestão foi aceita na hora e até com entusiasmo.
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PAI, Afasta de mim este Cálice (conto gay)
Short StoryPai, afasta de mim esse cálice...