Filho Pródigo

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"Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta

Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta"

✞ ✞

O cântico estava no auge. As fileiras abarrotadas de fiéis davam as mãos e faziam voz junto ao coral no canto do púlpito e observei aquilo tudo com olhos vazios. O que há pouco tempo atrás me enchia de júbilo hoje me era efêmero e sem importância.

Procurei na multidão em cantoria e logo o vi, assim como vi seus olhos pregados em mim. Como todo domingo, ele viera acompanhado dos pais e do irmão mais novo. Ele era o único que não cantava. Seus lábios lançaram o mesmo sorriso insolente de sempre e por um instante me transportei à primeira vez que encontrei, ou melhor, reencontrei Cristiano.

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Por ironia o dia de hoje remetia bastante ao fatídico dia em que, sem eu saber, minha fé tinha sido posta em prova. Também era domingo e também fora durante a missa matinal, lembro de estar no meio do credo quando meus olhos surpresos pousaram em sua figura. Facilmente lembrei dele pois, mesmo não o tendo visto há cerca de 8 ou 9 anos, ele fora meu aluno mais brilhante e questionador na cataqueteze e o tinha com carinho na memória.

Ao término da missa fui falar com ele e sua família.

- Não me diga que este homem crescido é o menino Cristiano? - perguntei enquanto cumprimentava a família Sales.

Julio Sales, amigo de infância de meu irmão mais velho e, consequentemente, meu, me abraçou apertado e apontou para o filho mais velho, que mantinha uma certa distância do resto da família.

- Em carne, osso, padre! - percebi certa aspereza em seu tom ao se dirigir ao filho - Cristiano, venha cumprimentar o Padre Osvaldo!

Observei um relutante Cristiano se aproximar de mim e estender a mão. Ele se tornara um belo rapaz, porém parecia...judiado. Ele estava pálido e seu semblante estava sombrio, com tênues olheiras marcando seus olhos. Seu cabelo desarrumado, quase comprido demais, e suas roupas mais largas do que deveriam, lhe dera um ar desarrumado.

Ele me fitou e quase não reconheci o menino alegre e sabido que me enchia de perguntas e questionamentos quando eu ainda era seminarista e seu professor de catecismo. Agora eu olhava para olhos sombrios e desinteressados.

Sacudi sua mão e me surpreendi com a força do seu aperto. Tentei ser breve mas suas mãos não abrandaram o aperto e continuava o cumprimento.

- Quanto tempo, Cristiano! - falei simulando uma alegria que não estava sentindo no momento, na verdade eu começava a ficar inquieto.

- Beleza, padre? - ele falou num tom baixo, grave e indiferente.

- Isso são modos!? - seu pai deve ter percebido o cumprimento eterno por que deu um tapa no braço dele, fazendo-o largar minha mão. O jovem deu o primeiro sorriso até então e virou as costas pra nós, se afastando com seu irmão mais novo em seus calcanhares.

Observamos o rapaz sair da igreja. Seu pai balançou a cabeça em desaprovação e sua mãe se virou pra mim, mortificada.

- Mil perdões pelos modos do Cristiano, padre. Ele anda... Meio revoltado...

- Deixe disso, dona Lúcia. - me apressei a tranquiliza la - é a juventude! Ele está com quantos anos agora?

- Fez 23 no último dia 15.

- Já? - dei uma risada e fui encaminhando os dois para a porta - O tempo passou e nem percebi. Parece que foi ontem que eu ensinei os mandamentos pra ele. Mas me diga, ele veio visita-los? Se eu não me engano ele estava estudando no Rio de Janeiro, certo?

Lucia gagejou uma resposta mas seu marido foi mais rápido.

- Isso é o que ele falava! - Júlio se deu conta que ainda estava na igreja e abaixou o tom - sugava meu dinheiro, mentia pra gente e saía pra gandaia! A gente só foi descobrir isso agora, quando ele se meteu numa enrascada. Aí lembrou do papai aqui.

Chegamos na escadaria do lado de fora da igreja mas Júlio continuava a desabafar. Pra ser sincero eu também estava curioso.

- Sabe onde ele estava Padre? No Rio Grande do Sul! Numa delegacia fedida...

Lucia olhava em volta envergonhada. Alguns fiéis vieram se despedir de mim mas pararam perante a visível raiva de Júlio. Tive que intervir.

- Júlio, Lúcia... Que tal terminarmos essa história terça no jantar? - era tradição desde sempre eu e meu irmão jantarmos na casa dos Sales toda terça feira - Eu aproveito e converso com o Cristiano, tento descobrir o que lhe aflige.

- Ah, Padre, - Lúcia segurou minhas mãos - Isso ia ser tão importante para nós! Cristiano está perdido. Talvez o senhor consiga colocar juízo em sua cabeça!

- Prometo tentar. - sorri confiante - Agora vão com Deus e que o senhor vos abençoe.

Os dois se despediram e foram em direção ao carro onde os filhos esperavam. Cristiano fumava um cigarro e olhava pra minha direção enquanto seu irmão tentava chamar sua atenção. Os pais chegaram e Júlio deu um tapa no cigarro do filho, provavelmente dando uma breve bronca antes de entrar.

Ele riu e olhou na minha direção novamente, ergui a mão num gesto amigável e ele retribuiu com um beijo de longe. Abaixei a mão surpreso e inesperadamente encabulado e me virei de costas onde alguns fieis retardatários me aguardavam. Tratei de esquecer aquele incidente e ao anoitecer eu já até duvidava se ele realmente tinha mandado um beijo ou se tinha sido minha imaginação.

Aquela foi a primeira noite que Cristiano povoou meus sonhos.

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- Padre? - Senti um toque apressado no meu braço, ergui a vista e vi a congregação já sentada e em silêncio, todos os olhos pregados em mim. Marcinho, o coroinha, olhava pra mim e para o púlpito, desesperado para que eu desse continuidade na missa.

Eu literalmente sonhara acordado.

Me ergui rápido e torci para não estar parecendo tão bobo quanto me sentia. Senti os olhos de Cristiano cravados em mim e, com muito esforço não o encarei de volta. Pelo menos naquele momento, no púlpito da minha igreja, consegui tira-lo da minha mente.

De qualquer modo essa era uma vitória rasa, já que de noite ele me teria em suas mãos mais uma vez.

De qualquer modo essa era uma vitória rasa, já que de noite ele me teria em suas mãos mais uma vez

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PAI, Afasta de mim este Cálice (conto gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora