XVII

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Admiro minha noiva agora sentada na cama enquanto enxuga o cabelo, vestida em um roupão branco, é impossível não perceber sua barriga de sete meses. Ela ainda me olha intensamente e não é difícil imaginar o porque me apaixonei por ela. Sua cor, seus lábios, seu olhar a sua mente, tudo nela exala sensualidade e esperança, sim esperança, eu havia esquecido como poderia ser minha vida fora desse morro e ela veio para lembrar que ainda existe coisas melhores do que tudo isso.

-... E então teve um dia em que tinha acabado de vir do hospital, tinha ido ver minha mãe, ainda não era procurado pela polícia e nem temido por onde ia, era só um cidadão comum, era final de tarde, cheguei em casa, fui verificar meus irmãos como sempre fazia, e estava tudo bem com eles, de repente ouço fogos pipocando por toda favela e meu radinho apitava sem parar, havia chegado a hora da verdade, aquele momento ia me separar da vida de homem de bem para um fora da lei, levei meus irmãos para o quarto do Pânico e desci para o QG, chegando lá meu pai me deu as ordens do que fazer, desci para o ponto estratégico com alguns homens cheio de arma e munição, quem olhava de fora via um homem forte com capacidade de derrubar qualquer um, mas por dentro eu estava como uma criança assustada - sacudo a cabeça como se quisesse dispersa toda lembrança daquele dia- eu atirava e os meninos ficavam impressionados, todos os tiros certeiros e precisos, mais todos não letais, eu não queria matar nenhum deles, o objetivo era defender a favela e nao matar ninguem, pelo menos o meu. Eu estava exausto, entramos noite a dentro naquela guerra, tinha visto muitos homens do meu lado morrer e o do outro também, e tudo pelo o que ? Poder ? Território? Drogas? Eu não sei , só sei que aquele era o meu mundo agora, até que pela exaustão eu errei um dos tiros e ele pegou no pescoço de um dos soldados rivais, na hora eu fiquei sem reação, sem saber o que fazer, parecia que tudo aquilo estava em câmera lenta, e eu só pensava que eu tinha acabado tirar um vida, tinha deixado talvez um filho órfão, um pai ou mãe chorando, eu nem sei como consegui ir pra casa quando acabou toda aquela matança. Eu me esfregava até quase ficar em carne viva no banho, como se aquilo fosse tirar minha culpa, fosse me fazer me sentir melhor, tadinho de mim, mal sabia que aquilo seria apenas o começo.

Lavínia não fala nada, só deita a cabeça no meu peito, ela entende que eu preciso daquilo para me sentir leve, preciso que ela entenda todo o meu medo, os meus receios.

- Naquela mesma invasão meu pai faleceu, o desgraçado levou um tiro de escopeta na cara, ficou irreconhecível, sei que é desumano eu pensar assim mais fiquei aliviado, eu e meus irmãos estávamos livres enfim, eu poderia ir embora com eles e levar minha mãe, mesmo debilitada também eu daria um jeito. Até que no dia seguinte eu recebi um telefonema, eu havia sido convocado para uma reunião. Meu pai era o braço direito de uma facção criminosa, o cara era aliado de umas três mafias, e mandava em mais três favelas do Rio, a sujeira era ainda mais funda do que pensei, mais mesmo assim eu ainda pensava em sair, seria mais difícil mas não impossível. Agora imagina a minha surpresa ao ver uma foto minha na televisão, junto com um vídeo meu em ação no dia da invasão, eu nem sei como jornalistas e a polícia ficou sabendo da minha existência, só sei que estava ali e contra fatos não há argumentos, eu era o novo dona da Rocinha e tinha herdado um império criminoso, com isso vieram ameaças aos meus irmãos e minha mãe, eu ficava louco porque nunca tinha vivido aquilo, vivia pilhado e nervoso, não conseguia dormi. A parte administrativa e financeira do tráfico eu tirava de letra, mais a parte suja e criminosa mesmo, essa eu não dava conta não tinha estômago para isso. Até que comecei a me drogar e beber eu via que aquilo me dava coragem para fazer muita coisa que sóbrio e são eu não faria.  Mandei meus irmãos embora, troquei seus nomes, a Ana Cláudia faz moda, ela tem talento, o Pierre faz Engenharia da computação, faz anos que não vejo os dois, falo muito pouco para não comprometer suas identidades, minha mãe faleceu 3 meses depois daquela invasão, e eu, eu sempre fui solitário, conheci o Maquin, ele me deu muita força, de fé mesmo, meu fiel. Com o tempo me acustumei e não precisei mais me drogar ou beber pra matar alguém, só se tornou banal para mim, se me perguntar se quero sair desse vida com certeza te digo que sim, mas no momento que eu renunciar tudo e colocar o pé pra fora desse morro, vai ter muita gente me esperando pra me matar, matar meus irmãos e matar você. - ela levanta a cabeça pra me olhar e seus olhos estão cheios de lágrimas não derramadas- calma preta, tá tudo bem, você me fez ter esperança, eu vivia morto nesse morro, sem sentido eu ainda continuar vivo, quando te vi uma chama se acendeu lá no fundo do meu íntimo, tudo bem que você da um trabalho do caralho, minhas olheiras que digam- ela ri- mais vale a pena, tudo que vier junto com você vale a pena. Eu te amo doutora.

Doutora Do Amor.Onde histórias criam vida. Descubra agora