𝑃𝑎𝑟𝑡𝑒 2

130 21 5
                                    

✭☽❅☾❅✭

JAINE

✭☽❅☾❅✭

21 de dezembro de 2020

Segunda-feira

Quando Jaine saiu da loja carregando o panda gigante, a chuva ficou mais forte. Esquecera-se completamente do guarda-chuva (que Francisco teve o favor de comer). Era normal naquela cidade; sobretudo em dezembro, as súbitas pancadas de chuva que iam e vinham em questão de segundos. Então, ela apressou os passos, passando pelo bar da esquina. Havia três homens de aproximadamente cinquenta anos ou mais bebendo cerveja - sim, em plena segunda-feira.

Jaine já estava acostumada a olhares libidinosos por parte de homens que podiam ser seus pais; por isso, ignorou quando ouviu o clássico:

— E aí, gostosa! — berrou o homem de cabelos grisalhos, exibindo o sorriso mais sensual que (não) conseguiu. Jaine deu um sorriso debochado, passando o panda gigante para o outro braço.

— Vai à merda! — ela respondeu, desaparecendo pela esquina com passos firmes. A mulher pôde escutar os homens rindo; provavelmente enquanto admiravam sua bunda.

Jaine só parou quando ouviu o latido rouco de seu velho cachorro do outro lado do portão. Ela tinha dito a Vânia para não deixar Francisco sair de dentro de casa.

Seu schnauzer cinzento pousou suas patas peludas e gigantes na calça jeans de Jaine, sujando-a de terra. Ela reprimiu um grito de advertência, suspirando alto. Daniela, a filha pré-adolescente da vizinha ao lado, estava parada à porta da sala observando-a com um ar analítico. A pestinha parecia uma boneca de porcelana emburrada: pele alva, cabelos loiros e ondulantes.

— O cachorro sentou no sofá — a menina disse em tom de reprovação.

— Ele dorme no sofá — Jaine disse. — Eu disse que ele não pode ficar lá fora. Vai sujar tudo e ele está resfriado.

— Eu tenho alergia a cachorros — Daniela disse. E daí? Jaine queria retrucar, mas não ia discutir com uma pirralha de treze anos que achava que era dona daquela casa. Então, ela se contentou a fechar a cara, jogando o panda no sofá da sala e pegando Francisco no colo. Levou-a à área de serviço e limpou suas patas.

Vânia, já com a bolsa transversal colada no corpo (Jaine teria que verificar depois se nada fora roubado naquela casa), foi até ela. Tanto a mãe quanto a filha tinham os mesmos cabelos loiros e olhar de desprezo para com Jaine.

— Sr. Dionísio comeu todo o mingau e agora está assistindo à televisão. — a loira disse. — Se puder transferir hoje, agradeceria. Preciso pagar minhas contas.

— Vou transferir em breve — Jaine disse. Francisco espirrou em sua cara. — Obrigada.

Vânia foi embora com a filha e logo Jaine sentiu-se aliviada. Estava prestes a acender um incenso para livrar a casa da péssima energia que se apossou quando escutou seu avô tossindo no quarto. Seu coração apertou. A mulher terminou de secar seu cachorro e foi até os aposentos do avô. O Sr. Dionísio assistia à missa das dezoito horas em sua poltrona favorita. Mesmo com seus quase noventa anos, o homem ainda exigia se vestir elegantemente e manter o penteado impecável; apesar dos ralos cabelos brancos.

Jaine parou e apoiou-se no batente da porta e observou-o de costas. Seu avô não era religioso, mas fazia questão de aprender um pouco de cada crença e tinha um apego especial às missas católicas. O programa havia se encerrado quando o velho homem virou o pescoço para a neta.

— Não escutei você chegar — Dionísio disse com a voz fraca, mas amistosa como sempre. Jaine se sentou ao seu lado, dando um sorriso desanimado. Ela pegou em sua mão macia e enrugada pelo tempo, e seu avô apertou levemente seus dedos. A cor de suas peles eram parecidas. — Está molhada. Vai ficar resfriada igual ao vô.

— Não se preocupe. Logo vou tomar um banho. — ela disse. Francisco, seu outro querido idoso resfriado, deitou-se no tapete frente à poltrona. Aquele cão, por muito tempo, fora a única companhia de seu avô desde que a Sra. Melinda se fora.

Dionísio havia se debilitado muito depois da morte da esposa; que se fora há apenas alguns meses. Ambos moravam sozinhos e recebiam visitas constantes de netos e filhos. Quando ele começou a ter problemas sérios de saúde e não conseguia mais ser tão independente, as visitas se tornaram cada vez mais escassas. Depois da morte de Melinda, os filhos se deram como ocupados e ninguém se propôs a cuidar dele. A maioria vivia fora da cidade e ninguém da família estava disposto a mudar-se para aquela pequena cidade litorânea — menos Jaine, a neta mais nova dos cinco netos. A desviada do clã. A destruidora da família tradicional.

Tantas coisas haviam mudado naquele ano — para pior ou para melhor, ela não sabia dizer — que Jaine sentiu-se perdida. Estava exausta por ter que trabalhar e cuidar do avô. Ter que aturar sua vizinha, a única que conhecia a família o suficiente para que ela confiasse para cuidar de seu avô quando estava ausente. Jaine sabia que Vânia jamais faria mal a ele, mas não confiava nela no quesito deixe a casa e minha vida pessoal intacta. O poder de fofoca de Vânia era grande; e era comum que desaparecessem danoninhos e pacotes de biscoitos da cozinha.

Jaine havia feito tudo aquilo pelo avô. Ela era uma das únicas netas a visitar seus avós quando podia, aproveitando para fugir um pouco da agitação da cidade grande. Ela não lamentava ter se mudado para aquela cidade — apesar de ser bem mais conservadora e fria, tinha lá seus encantos naturais. Além disso, fazia parte de sua infância e grande parte de sua adolescência.

Ali, estava mais próxima à praia e podia sair com o avô mesmo em cadeiras de rodas. O fato de ter se mudado meses depois do conturbado término de namoro também ajudou a esfriar sua cabeça e curar seu coração destruído.

Depois de preparar seu avô para dormir, Jaine secou o panda — que ainda estava jogado no sofá — e se deixou cair em meio às almofadas. Francisco deitou ao seu lado. Os únicos sons que ouvia naquele momento era o arfar de seu cão e a geladeira de cem anos na cozinha.

Jaine acariciava a cabeça de Francisco quando ouviu o barulho de algo batendo fortemente contra o metal. A mulher levantou-se rapidamente, e o cão ergueu as orelhas e latiu. Ela acendeu a luz da varanda e abriu a porta da sala, ouvindo os estalos em seu portão. Pedras. Jaine bufou e atravessou a garagem, ouvindo as vozes e risadas dos adolescentes do outro lado. Francisco passou correndo por ela, latindo para o portão.

— Ei! — Jaine gritou, escutando o grupo fugindo em suas bicicletas. Ela abriu o portão, pronta para puxar a orelha do primeiro pirralho que visse na frente. Mas os garotos já desapareciam na esquina, deixando pequenas pedras e amassos no velho portão. Pelo menos, não haviam escrito BRUXA SAPATONA no muro (como no mês anterior). Jaine não se ofendia nem um pouco com essas palavras, mas, que merda, no muro que havia acabado de pintar?

Ela suspirou, fechando o portão em seguida. Não era incomum que houvesse olhares tortos e fofocas com seu nome desde que se mudara para aquele lugar, há cerca de seis meses. Havia muitas pessoas boas naquela cidade, mas a maioria delas era tão presa às tradições e ao conservadorismo que, quem ultrapassasse certos limites, era tido como invasor. Os mais velhos a olhavam enojados. Os adultos faziam questão de falar mal dela. Alguns jovens jogavam pedras em seu portão para se divertirem. E as crianças, bem...a maioria delas não ligava para nada disso.

A aversão para com ela havia alguns motivos — e não, não era apenas pelo fato dela ser lésbica. Seu tatatatataravó era indígena (Jaine não tinha certeza de quantos TA's eram), e, apesar da maior parte de sua família ser branca, cristã e heterossexual, Jaine não era branca e nem cristã — e nem heterossexual. Isso já bastava para que seus vizinhos fanáticos pirassem.

Mas Jaine não estava nem aí para isso. Se sua esplendorosa presença incomodava, o que ela poderia fazer? Continuar incomodando, é claro.

A mulher apagou as luzes novamente e ligou os pisca-piscas. Metade das luzinhas havia se queimado, mas ela gostava de admirar as que restavam no escuro. Mais uma vez, a sensação de que teria um Natal solitário a deixou melancólica — o que não era verdade, pois seu avô (e Francisco) estariam ali. Ela faria uma torta e tomaria um vinho. Depois, Jaine presentearia o avô com as camisas sociais que tanto gostava e Francisco com seus amados patês sênior. Jaine não precisava de mais nada.

Esther & JaineOnde histórias criam vida. Descubra agora