Boulder, 2021.
Nostalgia.
E do tipo ruim.
Harry White segurou o impulso de sair correndo para fora da casa. Seus joelhos fraquejaram quando se obrigou a permanecer onde estava, no centro da sala de visitas clara demais em Boulder. Mesmo que o cômodo estivesse vazio, apenas as grandes janelas de vidro iluminando cada pedaço o faziam sentir que não pertencia àquela casa. Que não deveria ter um lugar como aquele a seu dispor. Não quando, anos antes, falhou como havia falhado; não quando uma verdadeira família poderia morar ali. E não ele, Harry White. O homem que falhou tantas vezes.
Deixou as chaves sobre o balcão. Não queria tocá-las por muito tempo, sentir que eram suas. Por mais que insistisse que estava fazendo aquilo por Melanie, não ajudava muito. Ela merecia aquela casa, aquela paz, aquela sensação de família muito menos que ele.
Talvez fossem perfeitos um para o outro, afinal.
— Que cara horrível, pai. Não é tão ruim.
E por falar no Diabo...
— Não estou fazendo cara nenhuma — resmungou de volta.
Melanie puxava duas das suas malas, olhando ao redor com curiosidade. Nenhuma satisfação ou surpresa inundou os traços da menina, mas Harry esperava por aquilo. A garota estivera em lugares melhores que aquele, apesar de ter passado por alguns piores também.
— Você continua teimoso — a garota deixou as duas malas no pé da escada e levantou uma sobrancelha para ele. — Ajuda?
White puxou bastante ar para os pulmões, como se fosse essencial respirar naquele momento mais do que nos outros. Então andou até onde Melanie estava parada e começou a subir as escadas com as malas dela. A garota, claro, nem se importou em tentar ajudar, e continuou no térreo analisando tudo. Uma exclamação alegre sobre a casa ter um jardim subiu cada degrau junto com White, e ele evitou pensar sobre a felicidade dela. Porque fez, mesmo que não quisesse, seu coração ficar quente. Confortável. Quase leve. Como se tivesse esperado a vida inteira por aquilo.
Se repreendeu assim que percebeu o que estava fazendo. Não poderia deixar aquele abismo o engolir; não quando as consequências de ser feliz daquele jeito quase o mataram da última vez. Ele sabia muito bem quais eram os riscos. Não tinha o privilégio da ignorância, como no passado, e não poderia colocar a culpa em sua esperança tola. Melanie era quem era; nada confiável. Uma peça venenosa. Não podia confiar nela, nem baixar a guarda.
Mas ainda era sua filha. Teria que conviver com ela.
Acomodou as duas malas no quarto em frente ao seu. Havia apenas uma cama e um armário, porque não soube o que comprar para a decoração. Pensou em um tapete, talvez cortinas, mas seu cérebro ficou completamente confuso quando a vendedora começou a questionar cores e modelos, então desistiu. Deixaria que Melanie fizesse as próprias escolhas quando sentisse necessário. Talvez ela nem mesmo quisesse um quarto decorado.
Uma segunda voz ocupou o silêncio da casa, no térreo, e tirou Harry de seus pensamentos. O detetive se empertigou um pouco curioso e um pouco alerta, como se mesmo depois de anos, mesmo em um território inocente como aquele, algo ruim pudesse acontecer. Assim, de repente. Como tudo em sua vida geralmente acontecia. Sentou-se tolo por um instante, mas percebeu que era por causa de Melanie. Estava há apenas um minuto pensando no quanto poderia confiar nela, e agora seu corpo dava a resposta que tanto procurou: pouco. Porque ao menor sinal de qualquer coisa suspeita, os sentidos de White entravam em modo de defesa, prontos para lutar.
Desceu as escadas quase correndo e, quando chegou até a sala de visitas, encontrou a filha conversando com um rapaz. Tinha a mesma idade que ela, aparentemente, e um sorriso que White conhecia muito bem. Tossiu, chamando a atenção dos dois, e Melanie nem mesmo pareceu surpresa quando virou e encarou Harry.
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Saco de Ossos (CONTINUAÇÃO DE QUEM MATOU SOFIA?)
Mystery / ThrillerEm Novembro de 2003 Londres passou por um período de puro terror. Ao redor da cidade, em sacos marrons, ossos e pedaços de carne humana começaram a ser encontrados por senhoras em caminhadas matinais e crianças brincando de esconde-esconde. A Scotla...