Rebanho

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Era um dia qualquer. Uma segunda de clima agradável, contrastando com as folhas marrons que enfeitavam o chão da cidade. O outono se aproximava silenciosamente, mas, ao contrário dos outros anos, não era acompanhado de uma frente fria e melancólica, trazendo consigo a tristeza de um inverno frio e solitário. Não, esse outono era diferente. O Sol brilhava, singelo, mas o suficiente para aquecer todos aqueles que necessitavam de reconforto, ainda deixando espaço para o vento, que bagunçava os cabelos longos da garota, proporcionando um frescor parecido com os das manhãs da primavera. 

No entanto, toda aquela sensação de prazer, proporcionado pelos beijos de calor do astro rei, fora apagado, como uma flor que murcha lentamente, morrendo aos poucos. Encarava a grande construção em sua frente, pensando se realmente havia feito a escolha certa ao acordar de manhã. O copo de café vazio, já amassado pela força e nervosismo em que se encontrava, foi jogado na lixeira antes da grande escadaria marrom. Suspirou, ansiosa, empurrando a pesada porta de madeira, recebendo passagem para o interior calmo da igreja.

Aquele grande corredor era, de certa maneira, extremamente acolhedor. A garota lembrava-se claramente de todas as vezes que já entrou no estabelecimento afoita, sendo perseguida pelos seus amigos da primeira comunhão, enquanto escutava os aflitos apelos de sua avó para que se comportasse. A missa de domingo foi a sua atividade preferida por muito tempo, pois sentia que cada história narrada acalentava sua alma, a confortando de qualquer sentimento ruim que poderia estar afligindo-lhe. E, quando não tinha mais idade para participar das atividades infantis, juntou-se ao coral, uma vez que sentia uma extrema necessidade de estar comunhão com Deus e sua casa.

Não sabia, exatamente, quando parou de frequentar o local. Não é como se ela tivesse simplesmente parado de acreditar em Deus, mas, em algum momento, aqueles fundamentos já não falavam com ela como antes o faziam. Aquilo, para a sua avó, foi uma ferida que nunca iria cicatrizar. Para a mais velha, era como se a garota estivesse recusando a palavra de Jesus e, desde então, orava todos os dias, para que sua alma não fosse condenada à um sofrimento eterno. Então, entrar na mesma igreja que tão fielmente jurou devoção à religião era, para a garota, um dos maiores pecados que ela poderia cometer.

A bebida, que antes tomara, deixou um gosto amargo na boca da mulher, que aceitou sem relutância, como se o próprio destino estivesse lhe dando uma pequena penitência pela ousadia. O banco de madeira estava tão gelado quando se lembrava e o silêncio era pior que qualquer multidão extremamente alta, pois deixava-a à mercê de seus próprios pensamentos, repletos de culpa.

"Oi" Sussurrou, encarando a grande cruz à sua frente. E, mesmo que o local estivesse quase vazio, ainda sentia que devia o mínimo de respeito ao ambiente e todas as orações antigas que ali pairavam. "Eu sei que tem muito tempo que não venho aqui... na realidade, tem muito tempo que eu não falo com Você. E eu sei que parece... não, eu sei que é muito hipócrita da minha parte, querer pedir um favor depois de renegar tudo o que um dia eu já acreditei." Seu coração pesava, como se toda a culpa que desprezasse diariamente finalmente viesse à tona, cobrando-a por todos os pecados. Tentava não soluçar, já sentindo as lágrimas escorrerem pela face, lavando a maquiagem, despindo-a de quem pretendia ser. "Mas vim aqui por algo maior que eu... por alguém maior que eu. E se o Senhor realmente escuta a todos, sabe que estou aqui por Alba. Ela está muito doente e nós não conseguimos pagar o melhor tratamento, nem mesmo juntando todas as economias... Eu não posso perdê-la, mamma também não está preparada para isso." O choro da mulher já dominava completamente seu corpo, os soluços eram altos e seu corpo inteiro tremia. A vergonha de sua hipocrisia pesava, mas nada doía como pedir pela saúde de sua avó. Pois, mesmo em todas as suas mais predições sobre seu futuro, sempre se imaginou afastada da religião, mas nunca pensou em um cenário onde não teria a matriarca consigo. Os poucos fiéis, talvez tão piores quanto a moça, por julgar-lhe diretamente sob os olhares de Deus, cochichavam baixinho. "E é egoísta de minha parte, pois talvez nonna já esteja pronta para abraçar-te, mas, se o Senhor me escuta, não deixe que ela vá... por favor....".

Seus joelhos já doíam quando levantou, as lágrimas, já secas, manchavam a pele. O padre estava de pé, no início de seu corredor, observando-a com afeição. Pietro era o sacerdote daquela Igreja desde que era pequena e, amigo de sua avó, observou a garota crescer, tornando-se o que era hoje. Era, provavelmente, a única pessoa ali que não a julgaria, mesmo após todas as histórias que vagueavam pelos corredores de madeira da instituição.

"Anna, querida, é uma ótima surpresa tê-la aqui novamente." O mais velho apontou para os bancos, indicando para a garota se sentar, segurando-lhe as mãos. "Sabe, sua avó ficaria muito feliz de saber que você está aqui, mesmo que seja apenas pela circunstância. Alba é uma mulher de uma fé extraordinária e, se você sentir a crença de sua avó ao orar, obviamente que o Divino Criador não irá ignorá-la.".

"Obrigada, padre Pietro." Abaixou sua cabeça, sentindo suas lágrimas escorrerem até as mãos em seu colo, agradecendo pelos cabelos, que cobriam face, encoberta por vergonha. Vergonha de quem era, mas, principalmente, por não ser aquilo que um dia já fora. "E peço perdão por ter abandonado a Igreja.".

"Não fale isso, Anna. Tenho certeza de que você estava apenas ocupada, mas que nunca deixou realmente isso retirar a sua fé." Era mentira. Ambos ali sabiam que era mentira. E a garota não tinha certeza se mentir era realmente um pecado muito grave ou como eles iriam ser penalizados por fazerem isso embaixo da casa de Deus, mas era imensamente grata que o fizera, mesmo que fosse para que ela se sentisse menos imprudente. "Sabe o que poderá te fazer bem? O coral se reunirá em poucos minutos para um ensaio e nós amaríamos ter nossa estrela de volta, pelo menos por uma música. O que acha? Poderá lavar o rosto e depois se juntar a nós." O homem apontou em direção aos toaletes, já conhecidos pela garota, que prontamente acenou e foi ao local indicado.

A água da pia era fria e alguns lencinhos antigos, esquecidos em sua bolsa de prováveis shows de cabarés, ajudaram a remover o resto de maquiagem em sua face. As sardas agora apareciam, como pequenas constelações. Os olhos negros estavam apagados, como uma noite sem estrelas, remanescendo apenas uma grande escuridão, onde ninguém teria nada além de incertezas. Pecadora, herege. Aquele era o rosto de um blasfemador e, ela, estava pronta para seu juízo final.

Colocou a bolsa em um dos bancos dianteiros e dirigiu-se ao altar, destacando-se do resto do coral, o qual usava suas vestes brancas, com seu jeans escuro e camiseta preta. Conhecia alguns ali, aqueles que, diferentes dela, nunca haviam abandonado o convento. Tentou sorrir, mas sentiu que aquilo era pior que apenas tentar fingir que não estava ali. Não era, realmente, seu maior desejo, voltar a cantar no coral da Igreja. Porém não iria negar um pedido de padre, pois sentia que não tinha créditos o suficiente para gastar.

"Boa tarde a todos! Hoje teremos a companhia de uma das melhores cantoras que já integraram o nosso coral: Anna, a neta de Alba.". Pietro apontou para a garota, que acenou com a cabeça, brincando nervosamente com as mãos. "Ela irá assumir a voz principal da nossa primeira música e depois seguiremos com a programação.".

A música não era aquela que ela estava acostumada em cantar, mas acreditava que a ideia foi inspirada nas crianças, pois elas gostavam de quando as músicas do coral se casavam com alguns dos filmes que viam na escola de domingo. A melodia de "Mary, did you know?" começou assim que a letra foi entregue para Anna. Não era difícil, realmente, mas sentia que qualquer pessoa ali faria um papel melhor que si. Não por serem melhores, mas por não acreditar ser digna de cantá-la.

Sua voz era potente, firme. Atravessava todos os corredores, levando a atenção apenas para si. E, se um dia fora uma herege, naquele momento, ninguém se importaria. Levava tanta emoção para o que fazia que, até o mais descrente se converteria ao escutá-la. Anna se sentia bem, não pela emoção da música ou de voltar pela Igreja, mas pela magnitude que ganhará naquele momento. Egocêntrica, mas pouco se importava se não acreditava no que falava ou se a estava ali por pura hipocrisia. Aqueles que antes a julgavam, concentravam-se em cada movimento seu, como se pudessem beijar seus pés se pedisse. E, no altar, olhando por cima de todos os outros pecadores e fingidos que ali estavam, se perguntava se Jesus se sentia tão poderoso quanto ela, podendo controlar fiéis dissimulados e farsantes, dispostos a fazerem qualquer coisa por aprovação.

Assim que a canção acabou, a realidade pesou em sua consciência, correndo para fora do templo. Pois ela pedia com o egoísmo de um crente impostor, apenas deixando suas palavras saírem, enquanto seus pensamentos eram comandados pelo egocentrismo do Diabo.



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