A mente é um lugar traiçoeiro. Depois de muito tempo oscilando na beira do precipício da loucura, os delírios, que antes eram guardados para as mais frias noites de abandono, começam a invadir a realidade como uma sombra, de repente e em silêncio, cobrindo todo o real com sua falta de cor e alegria, espantando toda a felicidade que poderia existir.
Não sei, exatamente, quanto tempo se passou desde que cheguei aqui. Entretanto, tenho a certeza de que era mais saudável em minhas primeiras semanas, pois a quantidade de drogas no meu sistema não era tão assustadora quanto é hoje. Além disso, como todo bom organismo, meu sistema não reage mais aos remédios e, mesmo extremamente dopada, o escuro da fantasia migra para a triste realidade do quarto branco, nunca me deixando em paz.
Resisto e, em alguns momentos, aqueles que me dominam dão-me uma carta de alforria cronometrada, para que eu possa aproveitar certos minutos de independência. São esses tempos que me permitem reconhecer a veracidade das coisas e pessoas. Cada instalação, parede, voz, barulho parecem tão quietos durante a lucidez, como se simpatizassem com a minha situação e permanecem em silêncio para que a paz reine.
Meu lar é um prédio construído em meados de 1750 para abrigar uma rica família francesa. Após a morte do último filho, a casa foi doada ao governo britânico e passou a ser um museu da academia de artes da cidade, sempre tendo eventos diários para a descoberta de novos pintores e artistas que aspiravam pintar um quadro no palácio real. A Universidade faliu em 1890, depois de assassinarem o professor de pinturas clássicas. A mansão, então, permaneceu anos abandonada e passou a ser moradia de vadios e mendigos da metrópole. Finalmente, uma empresa americana comprou as instalações e, após inúmeras reformas consecutivas, a casa onde foi, um dia, lar de barões, virou residência de loucos e doentes, para os quais eram prometidos a cura de suas dores e aflições.
O hospital era divido em 3 alas. A primeira parte é reservada para pesquisas e apurações científicas, sendo lá onde realizam os experimentos de remédios novos e procuram incansavelmente pela cura do câncer. O segundo departamento é denominado "Centro Clínico" e é o local onde médicos constroem consultórios para atendimentos de especialidades gerais. Muito movimentado pela população, dizem que é a área mais bonita e arborizada dos 3 setores. E, por último, há a ala psiquiátrica.
Por ser uma unidade secreta, as pessoas especulam que foi abandonada há alguns séculos e os gritos ouvidos são pedidos de socorro dos fantasmas que lá se encontram. Entretanto, a verdade está muito longe das histórias contadas. Eu, moradora da área 3, posso dizer com convicção que não há nenhum fantasma ou assombração. Os gritos, no entanto, são a maneira que nós, pacientes, encontramos de nos comunicar. Os berros são causados por raiva, angústia e tormento, e acontecem muito em momentos de alucinações ou visões. Já os uivos são resultados de dor, tortura e sofrimento. Você sempre escutara alguém uivar ao tomar um remédio à força ou quando somos amarrados, para facilitar o check-up dos doutores. E, por último, existem os choros. Talvez o mais agonizante, o choro sempre andará de mãos dadas com a tristeza. Quando perdemos um amigo ou, em lucidez, percebemos que nunca iremos ser amados ou resgatados é quando as lágrimas brotam em nossos rostos, como amigos indesejáveis. Não gostamos de admitir que somos fracos, vulneráveis. Muitos enfermeiros têm receio de entrarem em nossos quartos enquanto estamos acordados e, saber que eles podem nos ver chorar, dá mais uma vantagem ao inimigo.
O meu quarto é branco, apenas branco, uma vez que especialistas acham que é uma cor que acalma. Eu, todavia, discordo. A chamo de "Cor do Desespero". Hospitais são brancos, anjos que resgatam sua alma são brancos, papéis de divórcio são brancos e a eternidade deve ser branca, conseguindo ser mais mórbido que preto. Os aposentos possuem janelas, mas as grades impedem uma ampla visão do mundo lá fora. Eles têm medo de que pulemos para acabar com o mísero tormento da alma. Também não temos direito à objetos afiados pontiagudos, cordas, aparelhos eletrônicos ou roupas rasgáveis. Tudo o que temos foi fornecido por eles. Em cada quarto, há uma cama de solteiro, sempre forrada com lençóis brancos, um armário para roupas e sapatos, uma mesinha com uma jarra de água e algum quadro de família e uma estante de livros.
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Constelações
RandomCada estrela compõe sua constelação, como cada palavra compõe estes textos. Uma a menos e tudo desmoronaria; uma a mais e nada seria igual. E, assim como cada constelação faz parte de seu todo, o céu, cada crônica é uma parte de mim. Formo, então, m...