Prólogo

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Podem me dar o prêmio de campeã dos sentimentos inapropriados. Ou seria um exagero da minha parte? Porque, só a nível de informação para ajudar no julgamento, há apenas duas coisas que assolam minha mente nas últimas semanas: esta sensação angustiante de que não fiz nada realmente útil em duas décadas inteiras, e tédio.

E, bom, tédio não é o sentimento ideal para se nutrir pela vida no campo. Digo, pode ser comum para muitas pessoas que, como eu, não conheceram outra desde sempre, o desejo de fugir de toda essa calmaria para um lugar com algum movimento.

Mas não para mim.

Não para a herdeira desta fazenda que minha família insiste em chamar de legado.

Ainda que desconfie que tenha nascido para mais do que queijo, mais do que gado e pastagens.

Ainda que deseje compromissos mais desafiadores do que dar água ao único casal de equinos às seis da manhã. Como agora, por exemplo, quando o tédio acumulado me faz divagar.

Meus olhos estão concentrados no trajeto que a última gota de água percorre entre a torneira e um balde que prendo entre as pernas e, por algum motivo, isso me intriga. Aquela gota, direto da nascente. A origem tão confiável, tão conhecida. O destino tão evidente, definido mesmo antes que existisse. Ela dança, rápida, certeira, como quem se apressa para alcançar suas iguais. E quando finalmente o faz, promove uma perturbação na tensão superficial do líquido, rompendo-a até que alguns anéis se formem, expandindo-se para a borda do recipiente. E agora já não há gota, apenas a homogenia do todo.

− Esse silêncio é quase poético – a voz de Samuel me desperta do devaneio, e de quebra me faz sentir uma leve comichão na barriga.

Embora o cheiro marcante do corpo dele seja suficiente para que eu perceba sua presença, o som rouco daquela voz, mesmo depois de cinco anos, ainda mexe comigo.

− Pelo menos consegui enroscar essa manopla de forma firme o bastante para que você não me importune com sua terrível mania de economia.

Meu noivo se apoia em um monte de feno, os braços peludos se cruzam na frente do corpo. Ele mastiga alguma coisa que brinca de empurrar de um lado para o outro da boca, e deixa uma quase-risada escapar pelas narinas, quando diz:

− Acho que seu velho pai não consideraria esse um defeito meu.

Este indivíduo só é petulante assim porque sabe que meu pai o venera, e que confia toda a administração da fazenda a ele.

Samuel é um homem de negócios. Além de ser meia década mais velho do que eu, é bom administrador, bom contador. Antes de resolver que cuidaria de minha herança, sempre trabalhou em escritórios, edifícios, daqueles tipo arranha-céus. Semelhante aos mocinhos da maioria dos romances contemporâneos que encontramos em livrarias. A diferença é que Sam cresceu no campo. É também um homem de cavalos e gado. De botas sujas de lama, chapéu de couro e abdome bem desenhado. Como aquelas ilustrações de capas de discos sertanejos.

O ecletismo do charme dele é o que o torna tão irresistível não apenas para mim, mas para todas as mulheres solteiras de Mata Alta.

Sam é o que há de bom aqui.

Tento levantar o balde com muita dificuldade, mas ele se aproxima do meu corpo e encosta o quadril na minha coxa. Me esquivo, envergonhada.

Ele solta uma risada debochada antes de se abaixar ao meu redor e erguer o balde como se fosse uma pluma. Quando se afasta, eu o sigo, empoleirando um punhado de cabelo encharcado de suor no topo da cabeça, enquanto ele, sem dificuldade, despeja o conteúdo do balde no recipiente dos cavalos. Depois de terminar o trabalho, me olha com satisfação, mas a coisa toda só dura um segundo. Rapidamente a curva que tem nos lábios se desfaz. Ele dá um passo desafiador em minha direção.

Em Todos os SentidosOnde histórias criam vida. Descubra agora