Cercada pelas trevas, tanto fazia permanecer de olhos abertos ou fechá-los. Entretanto, optou por mantê-los bem abertos. Pressentia que, caso fechasse, seria condenada ao sono eterno. E não estava errada. Dormir em um ambiente daqueles estava longe de ser um de seus maiores desejos.
A escuridão esmaecia, dando lugar à luz cinzenta da madrugada. Percebeu-se presa em um clássico de seus pesadelos. Abandonada em uma sarjeta, separada do resto do mundo, Paula tentou gritar. A voz prendeu-se na garganta e não saiu, novamente.
Para seu desespero a situação apenas piorou. Não era apenas um compartimento no subsolo. O compartimento, longe de ser um simples buraco na terra, era um túmulo. Paula estava no pior lugar de um cemitério.
Uma onda de memórias ruins (do tipo que ela se esforçava para manter nos recônditos da mente) atingiu-lhe. Teve uma visão terrível.
Nesse cenário lúgubre, ela visitava a lápide em um dia nublado, sufocante, pesado. Sua mãe havia partido no dia anterior. A névoa, tão densa quanto a que aparecera em sua casa minutos atrás, encobria o corpo prostrado e abafava o choro. A terra úmida estava recém-colocada. O pai tentava consolá-la, mesmo estando tão inconsolável e choroso quanto ela.
De repente, um borrão. O pai tinha sumido da cena. No cemitério, ninguém além dela. Deu um passo à frente; um passo de gigante, pois bastou aquela simples ação para deixa-la ao lado da menina vestida de luto.
Não era o sepultamento de sua mãe, constatou. Era um episódio diferente. A pequena estava ajoelhada ao lado de um caixão aberto. A defunta dentro dele poderia até não ser a mãe dela, mas era um rosto conhecido.
Era seu funeral. E apenas uma pobre garota, encolhida como quem acabou de receber um soco no estômago, chorava pela sua morte. A pequena Paula era a única pessoa presente em seu momento final. A única amiga a despedir-se dela.
Acometida por uma ânsia, vomitou o absurdo, algo sólido e com vida própria. O causador de sua náusea pulsava em suas mãos. Era seu coração. O lado esquerdo de seu peito agora estava escavado, sentindo a falta de algo essencial.
Contra a sua vontade, carregou o órgão em direção ao corpo morto. O calor de seu corpo esvaía-se, concentrando-se no coração, expandindo o emaranhado de músculos cardíacos ao máximo. O globo disforme parecia estar em chamas, de tão quente. Por outro lado, sua pele, antes corada e cheia de vida, tornava-se ressequida e azulada.
— Misericórdia — sussurrou. Sacrificava-se contra a própria vontade. Seu coração era a oferta suprema ao ser maligno que a raptou. A bola de carne evaporou de suas mãos. Estava consumado.
Uma risada maléfica, de hiena, reverberou. Não; não uma hiena. Tinha notas de rugido, como de uma onça, um bicho das selvas.
— Muito bem, Paula. Muito bem. Você é mesmo uma boa dona. Alimentará seu bichinho de estimação com a melhor das rações do mundo — dois olhos alaranjados aproximavam-se dela. Tinha as pupilas em fenda, como uma cobra ou um gato... Um gato.
— Não acredito que direi isso... — balbuciou. — Eu sei quem você é. Pode parecer loucura, mas eu sei. Você é o Tom, um gatinho inofensivo! E isso tudo é um pesadelo!
— Claro, um pesadelo... — a risada irônica apertou-lhe a garganta. De alguma forma, mesmo sem mexer um dedo sequer, ele a estrangulava. O ar sumiu de seus pulmões. Ela agarrava o pescoço freneticamente, como se o ato fosse ajudá-la a respirar. — O nome é Palani, corrija-se por favor. Eu jamais atenderia por um nome tão estúpido quanto Tom. Não sou um gato de desenho animado — saiu das sombras.
A verdadeira forma do que antes parecia um gato doméstico era execrável. Uma criatura cinza com listras pretas, peluda, gigante e humanoide. As enormes garras reviravam a terra conforme andava, os braços eram grandes demais e as pernas igualmente desproporcionais, constantemente fletidas. Na cabeça, uma vasta cabeleira desgrenhada. A juba unia-se com uma barba enorme sob as presas cobertas por sangue seco. O pior, no entanto, eram os olhos. Olhos famintos e assassinos.
O aperto intensificou-se. As vias aéreas dela estavam completamente ocluídas. A barriga de Palani agitou-se como óleo fervente. As outras vítimas debatiam-se sob o couro malhado do gato-monstro, provocando ondulações visíveis a olho nu. Punhos cerrados, mãos se arrastando, pessoas desesperadas para sair. No entanto, havia apenas uma porta e ela era exclusivamente de entrada. No centro, onde um umbigo proeminente destacava-se, abriu-se um portal.
As mãos invisíveis levaram-na à cratera aberta no ventre do monstro. O abismo clamava. O terror selvagem apoderava-se dela. Podia ver o quão horrível aquela caverna infernal era.
Naquele vazio de entes imateriais, carrancas flutuantes e um plasma azul cobalto e grudento como piche, uma voz capturou sua atenção. "A música", pensou. A mãe cantava a mesma música. Dessa vez, não houve nevoeiro, mudança abrupta de tom ou cadáver em decomposição. O som era agradável, reconfortante. A mulher vinha ao seu encontro. Ela estava no olho do furacão, lutando contra o vendaval do Limbo, determinada a encontrar a pobre filha.
A mãe estendeu-lhe a mão. Agarrou-a, ainda temerosa, pensando que sua mão iria atravessar a dela. Entretanto, apesar de ser um espírito, a mãe não era um fantasma. A mulher feita da substância do Nada era sólida como uma rocha, mesmo sendo translúcida.
— Ele me prometeu que acabaria com você. Eu rezei para esse dia nunca chegar — disse, pesarosa — É tarde demais para voltar, mas podemos nos vingar. Venha! Anime-se. Cante comigo enquanto adentramos a escuridão. Isso pode até não derrotar essa coisa, mas o deixará extremamente irritado. Não tenha medo, minha linda. Eu estou aqui contigo — sorriu, um sorriso humano e encorajador.
— Senti sua falta, mamãe — disse, apertando a mão da mãe. Revirou-se, buscando coragem para seguir em frente sem medo. Encontrando-a sabe-se lá como. — Vamos!
"(...) Quisera, saber-te minha
Na hora serena e calma
A sombra, confia ao vento, o limite da espera
Quando dentro da noite reclama o teu amor (...)"Cantaram o mais alto possível. Com isso, espantaram os inúmeros tentáculos da escuridão e impediram seus pés de atolarem no chão de piche do desespero. As vozes em uníssono repeliram o mal. O poder do reencontro, o imenso amor de Mãe e Filha afugentaram o medo. Naquele dia, as entranhas de Palani sofreram. Destroçara o coração dela e permanecera com fome.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Dócil
Paranormal🥇 1° lugar em Paranormal no Concurso A Fantástica Fábrica de Contos 🥇1° lugar em Conto no Concurso Doces e Travessuras 🥈2° lugar em Melhor cena de terror no Concurso A Fantástica Fábrica de Contos Depois de muito lamentar, desapontada com os seus...