Os Trapaceiros

Capítulo 02: Esquifes, patifes e outras idiotices

Aos poucos, o interior do quarto abafado e sujo foi sendo iluminado pelos raios de sol de um novo dia; mesmo com a porta e a minúscula janela fechadas, a luz de fora adentrava pelas frestas, buracos e vazios do fétido quarto. A luminosidade parecia até mesmo trespassar as paredes úmidas e sem reboco, invadindo e expulsando sem cerimônias a escuridão inerte, repleta de silêncios e de muitas perscrutações inúteis à alma do homem que dormia. O calor escaldante e os sons dissonantes vindos da rua também invadiam o quarto. O corpo delgado reagiu à alta temperatura; deitado de bruços, sentiu as costas suarem, aumentando ainda mais a sensação de desconforto.

Enfim, despertou do sono, mas permaneceu deitado. Sem ânimo, sem pressa; virou-se na cama, ficou de barriga para cima, olhando para o teto, mas não era o teto empoeirado que ele buscava com o olhar. Por horas, ficava assim, deitado, olhando na verdade para si próprio, como se diariamente necessitasse analisar e pesar tudo que já se passara nessa sua vida. Ao invés do teto grisado e cheio de teias de aranha, ele via mosaicos sendo formados a partir de suas lembranças, com cores, sons e imagens misturadas e dissonantes; às vezes, ele só via a escuridão, às vezes via a luz de um passado impreciso e o cinza de um presente indesejado. O que procurava, de fato, era um sentido para sua existência.

Levantou-se. Olhou no relógio, dez e meia da manhã; foi ao banheiro, fez força e o jato de urina saiu fraco. Não precisou se mover para entrar debaixo do chuveiro, apenas virou o dorso, estendeu o braço e abriu o registro da água. Aproveitou e escovou os dentes ali mesmo, embaixo d'água. Enxugou-se. Trocou de roupa e olhou outra vez o relógio. Onze e dez. O estômago se manifestou, as entranhas se contorceram; não era fome, apenas o vazio ruidoso e nocivo; sentiu uma cólica e acreditou que logo teria uma gastrite. Não sabia ao certo o que era gastrite, mas sabia que era isso que a maioria das pessoas tinha quando sentia esse roer feroz no estômago mal alimentado. Como não tinha fome, resolveu não comer nada, apenas permaneceu sentado, pensando em suas bobagens rotineiras. O estômago uivou e revirou-se novamente. Pensou de novo em gastrite. "O que é gastrite?".

Foi até a mesinha de cabeceira, apanhou o dicionário e procurou: gas.tri.te s.f. inflamação da mucosa do estômago.

O celular tocou. Era Edimundo.

─ E aí, beleza?

─ O que foi?

─ Dá um pulo aqui no meu apê. Tenho novidades.

─ Ok, logo mais tô chegando por aí.

Paulo não se demorou muito. Pegou um pedaço de pão de dentro do fogão, requentou uma quantidade de café suficiente para encher metade do copo de plástico emborcado na pia e fez desses restos o seu almoço. Uma hora e vinte minutos depois já estava na entrada do prédio onde Edimundo morava. Quinto andar.

Edimundo abriu a porta. Cumprimentaram-se e Paulo entrou. Na parede havia um quadro com uma paisagem campestre: três cavalos correndo, esvoaçando suas crinas ao sabor do vento, ao fundo uma casinha e uma leve fumaça saindo da chaminé, alguns pássaros sobrevoando, uma árvore cuja copa estava repleta de frutas, sendo impossível determinar quais frutas eram essas, apenas eram visíveis as cores dos pingos vermelhos; havia também o desenho da silhueta de um homem vestido como camponês, usando uma camisa xadrez, um lenço amarrado no pescoço e um chapéu que lhe cobria o rosto com a sombra que projetava. Do lado do quadro uma estante repleta de livros e uma escultura disforme feita de ferro e madeira, bonita, expressiva, porém amorfa de sentimentos. O apartamento era uma bagunça só; um pouco do fedor humano que Paulo sentia em seu quarto também sentia ali; restos e migalhas de comida também eram visíveis em todo apartamento.

─ Como vão as coisas? ─ perguntou Edimundo.

─ Na mesma.

─ Tem um esquema aí.