Capítulo 3: O Apóstolo

9 2 0
                                    

O homem estava exaltado. Seu discurso era inflamado, verborrágico, emocionado; uma verdadeira catarse. Ele suava, gritava e tremia; o público presente estava em êxtase, todos hipnotizados pelas palavras e movimentos do homem no palco. Havia muita gente naquele galpão enorme, abafado e mal iluminado, coberto por telhas de zinco e cuja ventilação era precária, pois, a cada cinco metros, mal posicionados em cada pilastra, ventiladores pouco potentes tentavam inutilmente dar algum refresco à turba que se apinhava ali.

Porém, o volume da voz do homem que ecoava das caixas de som era ouvido alto e claro. Ali havia homens, mulheres, velhos, crianças pequenas e de colo, pessoas em cadeiras de rodas, com muletas e bengalas, com pernas e braços enfaixados. Gente empunhando carteiras de trabalho e objetos pessoais seus e de familiares.

O homem andava de um lado para o outro no palco, como se sentisse o peso das palavras que proferia. Seu semblante alternava entre sério, repreendedor e também extasiado.

Boa parte choramingava e gemia. Muitos gritavam e emitiam palavras de ordem, hosanas e lamúrias.

Todos se acotovelando, buscando chegar o mais próximo possível daquele homem, pois corria a notícia de que esse homem de deus curava pessoas apenas com um contato físico. Pediam, suplicavam; às vezes, de joelhos, por abraços, apertos de mão, um toque em suas cabeças, uma oração, uma benção ou até mesmo a toalha que ele usava para enxugar o suor que escolhia por todo seu corpo, pois mesmo um item como esse era capaz de produzir, em efeito reflexo, as benções do homem ungido por deus.

Sim, o homem era tratado como o próprio messias; e embora se fizesse de rogado, não parecia tão contrariado assim em ser santificado entre os homens. Até porque essa adoração lhe trazia muitos dividendos. Em menos de duas décadas de existência, a sua denominação cristã decuplicou o número de fiéis e, numa progressão aritmética impressionante, a sua receita. Setenta novas igrejas abertas, milhares de carnês, com mensalidades em quantias razoáveis, que apregoavam as conquistas materiais para os que cumprissem com pontualidade os pagamentos. Sem contar os inúmeros "produtos" comercializados, tanto presencialmente quanto online. Óleos, toalhas, chaves douradas, broches, camisetas, bonés, meias e muito mais. Tudo era tratado, não como um simples produto, lembrança ou souvenir, mas como algo material que refletia uma experiência com um ser maior. No mercado, costumam chamar isso de "valor agregado ao produto". Quanto estariam dispostos os fiéis a pagar por algo "ungido" pessoalmente pelas mãos do apóstolo?

Alguns davam tudo que tinham.

E muitos eram os testemunhos dos que afirmavam terem sido abençoados com milagres divinos; inclusive o próprio líder da igreja se dizia uma prova viva da misericórdia do seu deus. Milhares foram as vezes em que dava aquilo que chamam "testemunho". A história já era conhecida por todos. Ele fora de origem muito pobre, passou por tido de provação, inclusive fome. Entrou para a vida do crime, cometendo pequenos, depois coisa mais pesada. Mergulhou de cabeça no submundo, até que foi preso e acabou num presídio.

Lá recebeu a missão de deus, que falou diretamente consigo, através de um sonho. Saiu da prisão e tornou-se pastor em uma igreja, uma das maiores do país, e do mundo, mas sentiu-se sem prestígio e espaço para crescer e ser ouvido por mais gente. Então conta que novamente recebera mais uma visita de deus, dizendo-lhe que, mesmo saindo da vida de perdição, crimes e pecados e tendo permanecido tanto tempo em outra igreja, onde jurou fidelidade eterna, era hora já de ele abrir sua própria igreja, essa sim pura e longe dos vícios e vaidades que afastaram a atual igreja onde servia fielmente os preceitos divinos. E foi assim que ele fundou a "Igreja da Restauração do Poder Eterno de Deus", na qual ele, o homem ungido, foi alçado, por si mesmo, ao posto de Apóstolo.

Desde então, o homem vinha prosperando, ele e toda sua família. Casado, pai de um casal de belas crianças, o apóstolo apontava a si mesmo como um milagre e ferramenta da redentora obra divina na terra.

No meio do culto, durante exaltado discurso, o apóstolo fixou seu olhar num determinado ponto na multidão, parou de falar e pareceu meio aturdido. Depois olhou para os lados, voltou a olhar para o mesmo lugar de antes; franziu o cenho. Passados mais alguns segundos, pareceu voltar a si e continuou seu culto.

Horas depois, dentro do seu carro, enquanto seu chofer se concentrava no percurso até o bairro residencial onde o homem de deus morava, ele fazia uma ligação que achava necessária.

"Alô".

"Paz em Deus, irmão".

"Paz em Deus".

"Como vai o nobre senador?".

"Vou bem graças à deus e às orações do senhor".

"Fico feliz pelo irmão".

"A que devo sua ligação?".

"Precisamos conversar".

"Aconteceu alguma coisa?".

"Creio que sim meu estimado irmão; e receio precisar da sua ajuda".

"O irmão apóstolo sabe que pode contar com minha ajuda para qualquer coisa".

"Sei disso. O nobre senador é uma das colunas mais firmes na sustentação da obra do senhor".

"Apenas retribuo a graça profetizada pelo irmão na minha empreitada".

"Nossa empreitada".

"Sim irmão, nossa empreitada".

"Sim, meu irmão, não é preciso citar o esforço que nossa igreja e todos os colaboradores fizemos para elegê-lo senador da república. Nós investimos muito no senhor".

"E farei de tudo para não desapontar o povo de deus".

"Amém, irmão. Venha assim que puder, está bem?".

"Preciso antes resolver algumas questões e logo irei me encontrar com o senhor".

Os TrapaceirosOnde histórias criam vida. Descubra agora