Dor, se flor. || XICHENG

Capítulo um: A primeira carta (Jiang Cheng)

Eram três em ponto da madrugada. Jiang Cheng nem sequer havia conseguido tirar um cochilo.

A cada momento que seu corpo ameaçava adormecer, cenas horríveis de seu passado inundavam sua mente, causando-lhe agonia e desespero. Não sabia o que fazer. Wei Wuxian havia voltado, mas sua amada Shijie... Nunca mais a veria novamente.

As sombras que seus pais deixaram, a culpa que carregava pelo núcleo dourado em seu peito. Aquelas cicatrizes horrendas. Queria que os tempos bons voltassem, desejava isso todas as noites. Mas sabia que era algo que jamais poderia ter.

E pelos Deuses, como saber doía.

Levantou-se de sua cama e jogou as cobertas de lado. As vestes roxas completamente desarrumadas e as madeixas negras, uma bagunça total.

Foi nesse estado que começou a caminhar pelo Píer Lótus, não se importando se seus discípulos o veriam ou não. Seus passos eram pesados pelo pavilhão de madeira e seus olhos estavam cansados. Não sabia se iria aguentar mais um dia. O peso que carregava em suas costas era imenso. Queria que seu sofrimento acabasse, quanto antes possível.

Enquanto observava a movimentação da água que refletia tão bem a lua e iluminava as incontáveis lótus, perdia-se em seus pensamentos. Se fosse embora, quem cuidaria de Jin Ling? Ele não podia assumir a seita de Yunmeng e Lanling, afinal. Seu sobrinho já havia perdido os seus pais, mal tinha amigos, então quem...?

Jiang WanYin sentiu-se egoísta. Havia uma seita para comandar, uma criança para cuidar. Coisas para ensinar á aquele pequeno estúpido.

— Hipócrita do caralho. — Murmurou para si mesmo enquanto sentia um nó formar-se em sua garganta. — Jin Ling merece mais.

Óbvio que merecia. Se ao menos pudesse dar um pouco do amor que Yanli tinha para oferecer, e, inacreditavelmente, aquele pavão ridículo que foi Jin Zixuan, talvez seu sobrinho crescesse sabendo o que era um real amor familiar.

Mas como Jiang Cheng poderia lhe dar qualquer espécie de amor paterno se nunca sequer soube o que era o tal?

Como poderia levar luz para alguém se sempre viveu na sombra de Wei Wuxian?

Gostaria de ter sido menos exigente com seu pequeno Jin, mas era assim que fora tratado por sua mãe. Não havia como demonstrar afeto, porque nunca soubera o que é isso. Nunca sentiu.

"Você é horrível. Uma vergonha."

"Tão jovem e assumindo Yunmeng? Talvez esse fosse o papel certo para Wei Wuxian, uma pena que tenha se desviado do caminho certo..."

"Honre sua mãe pelo menos uma vez, garoto estúpido!"

"Uma desgraça tão grande para alguém tão pequeno... Pergunto-me se seria mais fácil se ele fosse como o grande Jiang Fengmian."

"Me pergunto se esse garoto, Jiang WanYin, irá dar conta de tudo isso."

"Ele se intitula como 'Sandu Shengshou'? É tão estranho para um líder..."

"Está cuidando do filho dos Jin sozinho, parece que ele irá se despedaçar a qualquer segundo com tanto estresse..."

"Talvez se ele fosse um pouco melhor..."

"O líder Jiang poderia, quem sabe..."

"Talvez se o líder..."

"Jiang Cheng..."

"Talvez..."

"..."

Lágrimas quentes e grosseiras rolavam pelas bochechas do homem de forma incontrolável antes mesmo que ele pudesse perceber.

Odiava aquilo.

Era tão fraco, fora tão ingênuo.

Por que não pôde proteger quem amava? Por que não podia ser um bom líder? Custava tanto satisfazer os outros? Não conseguia mudar quem era... Não queria ter tido aquele passado, não queria ter machucado as pessoas ao seu redor. Desejava que aquela espada tivesse sido nele ao invés de sua Shijie, que tudo houvesse sido diferente para Jin Ling, que o Píer jamais houvesse caído.

Desejava se sentir querido...

Nunca poderia.

Quem amaria um monstro como ele?

— Líder Jiang? — A voz de um de seus discípulos o despertou rapidamente de seus pensamentos. Segurou o choro e limpou a face mais rápido do que imaginava ser possível. — Há algumas horas chegou uma correspondência para o senhor, imaginamos que estivesse dormindo, mas... Está aqui.

Formou uma carranca — como lhe era rotineiro — em seu rosto, estalando a língua no céu da boca e virando-se para o jovem, revirando os olhos.

— Será possível que eu não posso ter um minuto de paz sem aqueles velhos estúpidos me encherem de correspondência? Tsc. — Pegou a carta em mãos, lendo os nomes que estavam escritos no envelope. As marcas e rugas frequentes em suas sobrancelhas rapidamente se desmancharam, dando lugar para uma feição um tanto surpresa. — Hm. Obrigado por entregar. Está liberado.

O discípulo o olhou com uma curiosidade gigantesca, querendo saber o motivo de aquilo ter mudado o humor de seu líder tão facilmente. A expressão raivosa voltou para Sandu Shengshou, fazendo com que o jovem se curvasce e corresse para longe.

Voltando para o seu quarto, Jiang Cheng ainda não conseguira tirar os mirantes da caligrafia perfeita que via. O remetente era Zewu-Jun.

Aquilo estava correto?

Ele estava em sua reclusão após todo o acontecido, então como e por que...?

Sim, ele havia enviado uma carta para Líder Lan faziam dias, mas as diversas admiradoras dele deveriam ter feito o mesmo, ou até mesmo como os outros líderes, como Huaisang, por exemplo.

... Pensando bem, Nie Huaisang poderia ficar com medo de enviar uma carta após ter planejado a morte cruel de Jin GuangYao. Mais que merecida, por sinal.

Sua atenção caiu até o destinatário.

"Para o líder de Yunmeng Jiang."

O sangue no corpo de WanYin nunca circulou tão rápido. Não podia acreditar que era realmente uma resposta.

Pegou o abridor de cartas e rasgou o impecável papel que outrora escondia as misteriosas palavras de Zewu-Jun. Assim, começou a ler as primeiras linhas da mesma.

"Caro Líder Jiang,

Eu agradeço pela..."

Foi tudo que conseguiu ler antes das portas de madeira de seus aposentos se abrissem bruscamente, fazendo com que Jiang Cheng desse um salto e virasse rapidamente, olhando com fúria para o seu sobrinho, que estava com os cabelos praticamente em pé.

— QUE PORRA?! Jin Ling, são três da madrugada, que merda você está fazendo aqui?! — Vociferou para o adolescente, deixando a carta de lado e caminhando até ele, cruzando os braços e aguardando por uma resposta.

— Jiujiu, os SEUS discípulos estão bebendo e fazendo barulho em frente ao meu quarto, eu não consigo dormir! Dê um jeito, dê um jeito!!! — Respondeu ao seu tio, imitando tanto a pose quanto as expressões dele. — Quero ir para a caçada noturna com o senhor... Preciso descansar.

Jiang Cheng suspirou, passando diretamente por seu sobrinho, indo em direção ao quarto do mesmo.

— Ande logo, ou prefere dormir em pé em frente a porta do meu quarto? Vou dar um jeito naqueles estúpidos. — Proferiu, dando as costas.

Um "Hm!" saiu dos lábios do garoto antes de apressar o passo até seu tio.

Jiang Cheng leria a carta quando voltasse.