Sereias existem?

108 22 15
                                    

1960

Hoje, após um mês de que tudo aconteceu eu tento aceitar a minha nova vida, mas tem sido bem difícil ter que observar todos de longe, ter que ficar ouvindo o choro da minha mãe ou dos meus irmãos e não poder dizer que estou bem e viva. Vocês provavelmente não estão entendendo, mas eu explico...

            Sou Marcela McGowan, tenho 29 anos e nasci em Caraíva, mas morava em São Paulo desde os meus 20 anos. Eu não sou e nem sigo os padrões que a sociedade impõe as mulheres, não nasci para casar e nem para gostar de homens. Eu era médica ginecologista, obstetra e sexóloga, algo que para uma mulher é totalmente fora do normal no tempo que eu vivia. Me descobri lésbica quando tinha 15 anos e finalmente senti algo além de amizade por uma menina, o nome dela? Rafaella Kalimann, apesar de ser um anjo em aparência, foi ela que transformou a minha vida nesse inferno que é hoje. Não posso culpa-la 100% por isso, porque eu tive culpa, por não ter acreditado.

            Sem enrolações... Eu sou uma sereia! Riu? Pois então trate de tirar esse sorriso do rosto, pois sereias são reais e eu sou a prova disso. Eu também não acreditava e cá estou eu sendo uma. Aconteceu tudo isso a mais ou menos 1 mês atrás quando eu estava de volta a Caraíva e precisava terminar com a Rafa, nós tínhamos brigado e ela disse que precisaríamos ter uma conversa definitiva. Eu, com todo meu egoísmo, não queria nem deixar ela explicar, até porquê eu estava cansada dos sumiços dela quase todas as noites. A minha mente enciumada só pensava em traição e traição.

            Meu pior defeito sempre foi ser egoísta e, as vezes, egocêntrica, porque eu ficava cega quando o assunto era sobre a minha pessoa ou quando era relacionado a mim de forma direta ou indireta. Talvez por eu ter sido criada como uma princesa e nunca ter precisado fazer qualquer esforço para ser o centro das atenções.

            Na noite que tudo isso aconteceu foi quando eu estava no ápice do meu egoísmo, já estava determinada a terminar com a Rafa e humilha-la para só assim eu me sentir bem comigo mesmo. Quando ela chegou em casa não deixei ela começar a falar e já destilei toda a minha raiva em cima dela.

– Mais uma noite e você sumiu, não é Rafaella? – Esbravejei quando ela abriu a porta do nosso apartamento. – Você não vai cansar de mentir pra mim?

– Marcela, por favor, não fala nada...- Ela me pediu com calma. – Deixa eu te explicar com calma tudo. – A voz de calma dela me irritava ainda mais.

– NÃO TEM EXPLICAÇÃO, PORRA! – Gritei, confesso, não tinha necessidade. – Eu não quero falar com você e nem ao menos olhar nessa sua cara. – Sai da sal em direção ao quarto cuspindo fogo.

– Má, você precisa entender que não é simples, você não sabe o que eu passo... – Rafaella sempre teve toda essa calma e isso me deixava extremamente irritada. – Eu preciso te levar em um lugar e prometo que você vai entender tudo...

– Você ainda não entendeu que eu estou terminando tudo o que nós temos? – Digo sem dó ou piedade. – Eu não quero nenhuma explicação.

– É a última chance que eu te peço e juro que mesmo assim você achar que não queira mais... – Ela engoliu a seco e isso mexeu muito comigo. – Eu te deixo ir...

– Onde? – Digo com a cara fechada.

– Só vem...

Rafaella sempre foi decidida e muito firme, apesar de ser sempre calma e serena, ela não deixava o que queria de lado por qualquer coisa. Conheci ela na praia quando eu tinha 15 anos e desde então foi amor a primeira vista. Nós acabamos ficando e até hoje estamos juntas, morando no mesmo apartamento, mas parece que somos desconhecidas, quer dizer ela parece. Eu não conheço nada sobre o seu passado, além de algumas histórias que ela contou. Todas as noites ela dá um jeito de sair e passar horas sumida, no inicio eu achava normal, mas ao longo dos anos isso foi piorando, até o momento que chegamos... Onde ela sumiu por DOIS dias.

– Onde nós vamos? – Pergunto quando ela dobra em direção a praia. – Vamos a praia?

– Eu te respondo tudo assim que chegarmos lá. – Ela parece nervosa, mesmo que esteja tentando disfarçar. – Só anda um pouco mais rápido. – Assenti e apressei o passo. Não demorou muito e nós chegamos a praia, onde estranhei ao ver algumas pessoas que de longe eu não conseguia reconhecer.

– Quem são eles, Rafa? – Perguntei a ela, já que estávamos indo em direção deles. Antes de me responder notei ela respirar fundo.

– Minha família... – Nesse momento meu coração disparou e eu não tinha reação, fiquei no automático até chegar onde estavam as 5 pessoas que seriam a família da Rafa. – Cheguei... – Ela disse a todos e logo percebi que todos eles tinham a mesma cor dos olhos. Eram 2 homens e 3 mulheres, mas não daria pra dizer que eram os pais de Rafa.

- Finalmente, maninha! – Disse um dos homens e eu pude notar a semelhança com Rafa e deduzi ser seu irmão. Meu coração ficou alegre em saber que ela me apresentaria a sua família. – Eu já não aguento mais essas roupas todas apertadas... – Opa! Como assim? Será que ele tem algum problema em usar roupas?

- Por favor, Rodrigo, se comporte! – Uma das mulheres falou e pela bronca aquela deveria ser a mãe de Rafa, apesar de aparentar ser irmã. – Vamos?

- Vamos, mãe. – Rafaella respondeu e eu não estava entendendo. – Ma, eu espero que você consiga entender tudo isso e que se eu estou te contando agora é porque eu realmente confio em você. – Todas essas palavras me deixam confusa e eu não consigo entender o que exatamente acontece no momento seguinte, mas é extremamente bizarro.

- CARALHO! – De repente todos ficam com umas caldas enormes e sem todas aquelas roupas que estavam a alguns minutos atrás, eles estão na água se afastando, esse momento é ótimo. Então eu corro, mas Rafaella me segura antes. – ME SOLTA AGORA! ME SOLTA! VOCÊ É NOJENTA, ESTRANHA!

- Marcela me escuta! – Ela olha implorando para mim. – Por favor, me deixa te explicar tudo isso...

- O que? Que você armou tudo isso? Quanto você pagou pra ele? Vai dizer agora que você também é? – Digo isso tudo de uma vez só e não dou oportunidade dela se defender. – VOCÊ É PATÉTICA! Agora vai dizer que a mula sem cabeça existe?

- É verdade, Marcela! Eu não paguei ninguém... – Ela aponta para aqueles seres ridículos no mar. – Eles são minha família... – Me aproximo do mar, molhando meus pés e grito.

- VOCÊS SÃO UMA PIADA! RIDÍCULOS! – Na minha cabeça aquilo tudo era uma armação bem mal feita dela para encobrir uma traição. – Você armou tudo isso para esconder que vive se agarrando com o Daniel?

- Marcela... Por favor... – Ela novamente tenta me convencer de ficar calma, mas de nada adianta.

- Me poupa! Isso ridículo! Essa coisa de sereia aí que você criou não existe... – Caso existisse máquina de voltar no tempo, eu usaria para esse momento.

- VOCÊ NÃO OUSE FALAR ISSO! – Não é Rafaella que está mais me segurando e sim aquela que eu deduzi que seria sua mãe, não sei como, mas é ela. – Você é uma mulher fútil, egoísta e não merece ter alguém como a minha filha com você. Sua espécie toda é imunda! Vocês humanos são horrorosos e não tem sentimentos por ninguém além de si. – Ela fala com tanta raiva que me causa arrepios na espinha.

- ME LARGA!

- Eu vou te largar e espero nunca mais te ver... – Ela diz me soltando e indo novamente para o mar. O que me deixa chocada ao ver que ela realmente se transforma em algo.

- Você... – Rafaella chorava. – Me decepcionou tanto... – Ela diz isso e se vai, sem ao menos dizer tchau.

- Volta aqui Rafaella! QUEM TEM QUE TERMINAR SOU EU! – Falo chutando a água e não acreditando que ela sumiu nessa imensidão que é o mar. – VOCÊ É RÍDICULA, VOCÊ E ESSA SUA FAMÍLIA, TODOS VOCÊS QUE FICAM NESSE MAR, INCLUSIVE ESSE MAR É PATÉTICO.

            Raio, trovão, relâmpago, onda, raiva, chuva... Tudo isso começa a acontecer após eu terminar de falar. Eu fico confusa, porque eu não consigo sair do lugar, meu corpo quer correr de volta para casa, mas ele não sai do lugar. Começo a ficar fraca, minha perna não se mexe... Eu caio. E não consigo me mexer, sinto a água me tocar na barriga e não sinto os meus pés... Olho para baixo e não são mais meus pés ali... Agora são caldas.

(A) MarOnde histórias criam vida. Descubra agora