Emendado enfim de suas distrações e divagações, prossegue o A. diretamente com a história prometida. — De como Frei Dinis deu a manga a beijar à avó e à neta, e do mais que entre eles se passou. — Ralha o frade com a velha, e começa a descobrir-se onde a história vai ter.
Este capítulo não tem divagações, nem reflexões, nem considerações de nenhuma espécie, vai direto e sem se distrair, pela sua história adiante.
Frei Dinis chegava ao pé das duas mulheres, e disse:
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
Joana adiantou-se alguns passos a beijar-lhe a manga. Ele acrescentou:
— A benção de Deus te cubra, filha, e a de nosso padre S. Francisco!
— Benedicite, padre guardião! — disse a velha inclinando-se, meia levantada da cadeira.
Em nome do Senhor! amém — respondeu o frade aproximando-se, e chegando o braço ao alcance de lho ela beijar; — Ora aqui estou, minha irmã; que me quer? E como vai isto por cá? Vamo-nos confortando, tendo paciência, e sofrendo com os olhos no Senhor.
— Já os não tenho senão para ele, padre.
— Ah, ah! irmão Francisca, sempre esse pensamento, sempre essa queixa! Tenho-a repreendido tanta vez e não se emenda.
— Eu não me queixei, meu padre. Deus sabe que não me queixo... ao menos não por mim.
— Pois por quem?
— Ó padre!
— Irmã Francisca, tenho medo de a entender. Eu não conheço as afeições da carne nem lido com os fracos pensamentos do mundo. Sou frade, minha irmã, sou um que já não é do número dos vivos, que vesti esta mortalha para não ser deles, que a vesti num tempo em que a mofa e o desprezo são o único patrimônio do frade, em que o escárnio, a derrisão, o insulto — o pior e o mais cruel de todos os martírios — são a nossa
púnica esperança. Eu quis ser frade, fiz-me frade no meio e tudo isto; já velho e experimentado no mundo, farto de o conhecer, e certo do que me espera — a mim e à profissão que abracei. Que quer de um homem que assim se resolveu a cortar por quanto prende a humanidade a esta miserável vida da terra, para não viver senão das esperanças da outra? Eu vesti este hábito para isto. O seu irmão, o seu para que o vestiu? É um divertimento, é um capricho, é uma comédia com Deus? Rasgue-o depressa, vista-se das galas do mundo, não aperte com a paciência divina, trajando por fora o saco da penitência e trazendo o coração por entro desapertado de todo o cilício e mortificação.
A velha com as mãos postas, a face alevantada e os apagados olhos para o céu, oferecia a Deus todo o amargor daquela austeridade que não cuidava merecer nem lhe parecia entender. Joaninha, que insensivelmente se fora aproximando da avó e a tinha como amparada por trás com um dos seus braços, firmava a outra mão nas costas da cadeira e cravava fita no frade a vista penetrante e cheia de luz. A expressão do seu rosto era indefinível: irisava-lho, distinta mas promiscuamente, um misto inextricável de entusiasmo e desanimação, de fé e de incredulidade, de simpatia e aversão.
Dissera que naqueles olhos verdes e naquele rosto mal corado estava o tipo e o símbolo das vacilações do século.
— Padre! — tornou a velha com sincera humildade na voz e no gesto: — se o mereci, castigai-me. Deus, que me vê e me ouve, bem sabe que o digo em toda a verdade do meu coração, e há de perdoar-me porque sou fraca e mulher.
— Pois aos fracos não é que Ele disse: Toma a tu cruz e segue-me? Quem a obrigou a fazer os votos que fez?
— É verdade, padre, é verdade: bem sei o que prometi, que me voltei a Deus de alma e corpo, que me não pertenço, que nem das minhas afeições posso dispor, mas...
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Viagens na minha terra
RomanceViagens na minha terra - Publicado em 1846, o livro de Almeida Garret é uma mistura de realidade e ficção. No livro, o autor narra uma viagem verdadeira entre Lisboa e Santarém.