Carta de Carlos a Joaninha: continua.
Júlia levantou finalmente para mim os seus olhos úmidos, assombrados das mais longas e assedadas pestanas que ainda vi em olhos de mulher, e disse-me:
— Carlos, eu estou triste. Devia consolar-me: diga-me alguma cousa que me console. Fale-me.
— Que hei de eu dizer?,..
— É um cavalheiro, Carlos: diga-me que o é, e desassombre-me deste terror em que estou.
— Pois duvida, Júlia?...
— Não duvido. Queremos-lhe todos muito aqui... muito demais... receio: como havemos de duvidar?
— Oh Júlia, perdoe-me! — exclamei eu lançando-me a seus pés, tomando-lhe as mãos ambas nas minhas, e beijando-lhas mil vezes num paroxismo de verdadeira contrição. — Perdoe-me, Júlia: bem sei que fiz mal, e prometo...
— Não prometa nada, senão que há de ser cavalheiro. Isso sei eu e sinto que o pode cumprir.
— Juro por... por ela.
— Ela!... Ela ama-o, Carlos. É melhor dizer a verdade de uma vez, e encarar todas as conseqüências de uma posição difícil, do que iludir-se a gente sem as evitar. Laura ama-o, mas não deve nem pode amá-lo.
Se fosse livre, não sei o que diria — não sei o que faria eu... Mas não se trata de mim — prosseguiu com volubilidade febril — não se trata de mim, Carlos, trata-se dela. Laura não o pode amar, está comprometida. Há de partir em três meses para a Índia.
— Para a Índia!
— Sim: é verdade: vê-lo-á. O seu noivo é capitão ao serviço da Companhia, e parte em casando,
Eu sentia-me morrer o coração dentro do peito: foi a primeira dor verdadeira de alma que sofri... Aquele era o primeiro amor sincero da minha vida, e aquela foi também a primeira excruciante pena de amor por que passei.
Eu que de tais penas zombara sempre, que as desterrava da realidade para os romances, eu!... Ai! que poeta ou que novelista soube nunca pintar um padecer como eu experimentei naquela hora?
Não sei o que fiz nem o que disse; não me recordo senão que senti as lágrimas de Júlia caírem-me sobre a face e misturarem-se com as minhas que corriam em abundância. Levantei os olhos, para ela, e a expressão que vi nos seus... oh! como a hei de esquecer nunca?
Quanto há de piedade e compaixão no tesouro infinito de um coração feminino se derramava daqueles olhos celestes para me consolar. La não ficava senão uma tristeza profunda, desanimada e mortal...
Não sei que vasto pensamento, que idéia louca... ou antes, que
pressentimento indeterminável e confuso me atravessou pelo espirito — ou seria pelo coração? — naquele momento...
Se Júlia?...
Mas não pode ser.
— Júlia, Júlia. — bradei eu, — quero vê-la: hei de vê-la uma vez ao menos. Não me negue este ultimo favor. Sei que devo, que preciso, que é forçoso fugir dela. Mas antes hei de dizer-lhe...
— O quê?...
— Que a amo como nunca amei, como nunca mais hei de amar...
— Ai Carlos!
— Que para sempre, sempre...
Júlia levantou-se sem dizer palavra, e lançando sobre mim um olhar de inefável compaixão, saiu rapidamente do quarto.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Viagens na minha terra
Любовные романыViagens na minha terra - Publicado em 1846, o livro de Almeida Garret é uma mistura de realidade e ficção. No livro, o autor narra uma viagem verdadeira entre Lisboa e Santarém.