Depois de muito procurar acha enfim o Autor a igreja de Santa Maria de Alcáçova.— Estilo da arquitetura nacional perdida. — O terremoto de 1755, o Marquês de Pombal e o chafariz do Passeia Público de Lisboa. — O chefe do partido progressista português no alcáçar de D. Afonso Henriques. — Deliciosa vista dos arredores de Santarém observada de uma janela da Alcáçova, de manhã. — É tomado o autor de idéias vagas, poéticas, fantásticas como um sonho. — Introdução do Fausto - Dificuldade de traduzir os versos germânicos nos nossos dialetos romanos.
Depois de muito procurar entre pardieiros e entulhos, achamo-la enfim a igreja de Santa Maria de Alcáçova. Achamos, não é exato: ao menos eu, por mim, nunca a achava, nem queria acreditar que fosse ela quando ma mostraram. A real colegiada de Afonso Henriques, a quase-catedral da primeira vila do reino, um dos principais, dos mais antigos, dos mais históricos templos de Portugal, isto?... esse igrejório insignificante de capuchos! mesquinha e ridícula massa de alvenaria, sem nenhuma arquitetura, sem nenhum gosto! risco, execução e trabalho de um mestre pedreiro de aldeia e do seu aprendiz! É impossível.
Mas era, era essa. A antiga capela-real, a veneranda igreja da Alcáçova foi passando por sucessivos reparos e transformações, até que chegou a esta miséria.
Perverteu-se por tal arte o gosto entre nós, desde o meio do século passado especialmente, os estragos do terremoto grande quebraram por tal modo o fio de todas as tradições da arquitetura nacional, que na Europa, no mundo todo talvez se não ache um pais onde, a par de tão belos monumentos antigos como os nossos, se. encontrem tão vilãs, tão ridículas e absurdas construções públicas como essas quase todas que há um século se fazem em Portugal.
Nos reparos e reconstruções dos templos antigos é que este péssimo estilo, esta ausência de todo estilo, de toda a arte mais ofende e escandaliza.
Olhem aquela empena clássica posta de remate ao frontispício todo renascença da Conceição Velha em Lisboa. Vejam a emplastagem de gesso com que estão mascarados os elegantes feixes de colunas góticas da nossa Sé,
Não se pode cair mais baixo em arquitetura do que nós caímos quando, depois que o Marquês de Pombal nos traduziu, em vulgar e arrastada prosa, os rococós de Luís XV, que no original, pelo menos, eram floridos, recortados, caprichosos e galantes como um madrigal, esse estilo bastardo, híbrido, degenerando progressivamente e tomando presunções de clássico, chegou nos nossos dias até ao chafariz do Passeio Público!
Mas deixar tudo isso, e deixar a igreja da Alcáçova também; entremos nos palácios de D. Afonso Henriques.
Aqui, pegado com o pardieiro rebocado da capela hão de ser. Por onde se entra?
Por esta portinha estreita e baixa, rasgada, bem se vê que há poucos anos, no que parece muro de um quintal ou de um pátio.
É com efeito aqui; apeemo-nos.
Recebeu-nos com os braços abertos o nosso bom e sincero amigo, atual possuidor e habitante do régio alcáçar, o Sr. M. P.
Notável combinação do acaso! Que o ilustre e venerando chefe do partido progressista em Portugal, que o homem de mais sinceras convicções democráticas, e que mais sinceramente as combina com o respeito e adesão às formas monárquicas, esse homem, vindo do Minho, do berço da dinastia e da nação, viesse fixar aqui a sua residência no alcáçar do nosso primeiro rei, conquistado pela sua espada num dos feitos mais insignes daquela era de prodígios!
Entramos na pequena horta em forma de claustro que une a antiga casa dos reis com a sua capela. Assim foi sem dúvida noutro tempo: a parede oriental da igreja é o muro do quintal de um lado, mas as co-municações foram vedadas provavelmente quando a coroa alienou o palácio e o separou assim perpetuamente do templo.
Plantada de laranjeiras antigas, os muros forrados de limoeiros e parreiras, aquela pequena cerca, apesar de muitos canteiros e alegretes de alvenaria com que está moirescamente entulhada, é amena e graciosa à vista.
Apresentou-nos o nosso amigo a sua mulher, senhora de porte gentil e grave; beijamos seus lindos filhos, e fomos fazer as abluções indispensáveis depois de tal jornada para nos podermos sentar á mesa.
O palácio de Afonso Henriques está como a sua capela: nem o mais leve, nem o mais apagado vestígio da antiga origem. Sabe-se que é ali pela bem confrontada e inquestionável topografia dos lugares, por mais nada...
E que me importam a mim agora as antigüidades, as ruínas e as demolições. quando eu sinto demolir-me cá por dentro por uma fome exasperada e destruidora, uma fome vandálica, insaciável!
Vamos a jantar.
Comemos, conversamos, tomamos chá, tornamos a conversar e tornamos a comer. Vieram visitas, falou-se política, falou-se literatura, falou-se de Santarém sobretudo, das suas ruínas, da sua grandeza antiga. da sua desgraça presente. Enfim, fomo-nos deitar,
Nunca dormi tão regalado sono em minha vida, Acordei no outro dia ao repicar incessante e apressurado dos sinos da Alcáçova. Saltei da cama, fui à janela, e dei com o mais belo. o mais grandioso, e ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda pus os meus olhos.
No fundo de um largo vale aprazível e sereno está o sossegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre de água junto às margens, donde se debruçam verdes e frescos ainda os salgueiros que as ornam e defendem. De além do rio, com os pés no pingue nateiro daquelas terras aluviais, os ricos olivedos de Alpiarça e Almeirim; depois a vila de D. Manuel e a sua charneca e as suas vinhas. Daquém a imensa planície dita do Rossio, semeada de casas, de aldeias, de hortas, de grupos de árvores silvestres, de pomares. Mais para a raiz do monte, em cujo cimo estou, o pitoresco bairro da Ribeira com as suas casas e as suas igrejas, tão graciosas vistas daqui, a sua cruz de Santa Iria e as memórias romanescas do seu Alfageme.
Com os olhos vagando por este quadro imenso e formosíssimo, a
imaginação tomava-me asas e fugia pelo vago infinito das regiões ideais Recordações de todos os tempos, pensamentos de todo o gênero afluíam ao espírito, e me tinham como num sonho em que as imagens mais discordantes e disparatadas se sucedem umas ás outras.
Mas eram todas melancólicas, todas de saudade, nenhuma de esperança!...
Lembraram-me aqueles versos de Goethe, aqueles sublimes e inimitáveis versos da introdução do Fausto:
Ressurgis outra vez, vagas figuras,
Vacilantes imagens que à turbada
Vista acudíeis dantes, E hei de agora
Reter-vos firme? Sinto eu ainda
O coração propenso a ilusões dessas?
E apertais tanto!... Pois embora! seja;
Dominai, já que em névoa e vapor leve
Em torno a mim surgis. Sinto o meu seio
Juvenilmente tépido agitar-se
Co'a maga exalação que vos circunda.
Trazeis-me a imagem de ditosos dias,
E dai se ergue muita sombra amado;
Corno um velha cantar meio esquecido,
Vêm os primeiros símplices amores
E a amizade com eles. Reverdece
A mágoa, lamentando o errado curso
Dos labirintos da perdida vida;
E me está nomeando os que traídos
Em horas belas por falaz ventura
Antes de mim na estrada se sumiram.
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Não me atrevo a pôr aqui o resto da minha infeliz tradução: fiel é ela, mas não tem outro mérito. Quem pode traduzir tais versos, quem de uma língua tão vasta e livre há de passá-los para os nossos apertados e severos dialetos romanos 20
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Viagens na minha terra
RomanceViagens na minha terra - Publicado em 1846, o livro de Almeida Garret é uma mistura de realidade e ficção. No livro, o autor narra uma viagem verdadeira entre Lisboa e Santarém.