Novo Gênesis.— O Adão social muito diferente do Adão natural. — Carlos sempre um por seus bons instintos, sempre outro por suas más reflexões. — De como Joaninha recebeu o primo com os braços abertos, e do mais que entre eles se passou. — Dor meia dor, meio prazer.
Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno de tolices.
O homem — não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem contrafeito, apertando e forçando em seus moldes de ferro aquela pasta de limo que no paraíso terreal se afeiçoara à imagem da divindade — o homem assim aleijado como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente que habita na terra.
Rei nascido de todo o criado, perdeu a realeza: príncipe deserdado e proscrito. hoje vaga foragido no meio de seus antigos estados, altivo ainda e soberbo com as recordações do passado, baixo, vil e miserável pela desgraça do presente.
Destas duas tão apostas atuações constantes, que já per si sós o tornariam ridículo, formou a sociedade, em sua vã sabedoria, um sistema quimérico, desarrazoado e impossível, complicado de regras a
qual mais desvairada, encontrado de repugnâncias a qual mais aposta. E vazado este perfeito modelo de sua arte pretensiosa, meteu dentro dele o homem, desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e disparata-do, doente, fraco, raquítico; colocou-o no meio do Éden fantástico de sua criação — verdadeiro inferno de tolices — e disse-lhe, invertendo com blasfemo arremedo as palavras de Deus Criador:
"De nenhuma árvore da horta comendo comerás:
"Porém da árvore da ciência do bem e do mal dela só comerás se quiseres viver."
Indigestão de ciência que não comutou seu mau estômago, presunção e vaidade que dela se originaram — tal foi o resultado daquele preceito a que o homem não desobedeceu como ao outro: tal é o seu estado habitual.
E quando as memórias da primeira existência lhe fazem nascer o desejo de sair desta outra, lhe influem alguma aspiração de voltar à natureza e a Deus, a sociedade, armada de suas barras de ferro, vem sobre ele, e o prende, e o esmaga, e o contorce de novo, e o aperta no ecúleo doloroso de suas formas,
Ou há de morrer ou ficar monstruoso e aleijão.
.................................................................
..................................................................
Poucos filhos do Adão social tinham tantas reminiscências da outra pátria mais antiga, e tendiam tanto a aproximar-se do primitivo tipo que saíra das mãos do Eterno, forcejavam tanto por sacudir de si o pesado aperto das constrições sociais, e regenerar-se na santa liberdade da natureza, como era o nosso Carlos.
Mas o melhor e o mais generoso. dos homens segundo a sociedade, é ainda mais fraco, falso e acanhado.
Demais, cada tentativa nobre, cada aspiração elevada de sua alma lhe tinha custado duros castigos, severas e injustas condenações desse grande juiz hipócrita, mentiroso e venal... o mundo.
Carlos estava quase como os mais homens... ainda era bom e verdadeiro no primeiro impulso de sua natureza excepcional; mas a reflexão descia-o á vulgaridade da fraqueza. da hipocrisia, da mentira comum.
Dos melhores era, mas era homem,
Os seus pensamentos, as suas considerações em toda aquela noite, em todo o dia que a seguira, na hora mesma em que ia encontrar-se com o objeto que mais lhe prendia agora o espirito, senão é que também o coração, todas participavam daquela flutuação inquieta e doentia de seu ser de homem social, em quem o tíbio reflexo do homem natural apenas relampejava por acaso.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Viagens na minha terra
RomansaViagens na minha terra - Publicado em 1846, o livro de Almeida Garret é uma mistura de realidade e ficção. No livro, o autor narra uma viagem verdadeira entre Lisboa e Santarém.