Partida de Santarém. — Pinacoteca. — Impaciência e saudades. — Sexta-feira. —Martírio obscuro. — A figura do pecado. — Estamos no vale outra vez. — Evocação de encanto. — A irmã Francisca e Frei Dinis. — A teia de Penélope. — E Joaninha? — Joaninha está no Céu. — A mulher morta a dobar esperando que a enterrem. — A esperança, virtude do Cristianismo. — Uma carta.
Estou deveras fatigado de Santarém; vou-me embora.
Despedimo-nos saudosos daquela boa e leal família que nos hospedara com tanto carinho, com toda a velha cordialidade portuguesa; partimos.
Apenas comecei a respirar o ar fresco da manhã nos olivais, senti desafogar-se-me a alma daquela constrição cansada que se experimenta na longa visita a um museu de antigüidades, a uma galeria de pinturas.
Perdoem-me que não diga pinacoteca; bem sei que é moda, e que a palavra é adotável segundo as mais estritas regras de Horácio, pois cai da fonte grega diretamente e sem mistura: mas soa-me tão mal em português que não posso com ela.
Santarém fatigou-me o espírito, como todas as coisas que fazem pensar muito. Deixo-a porém com saudade, e não me hei de esquecer nunca dos dias que aqui passei. De quê e como sou eu feito, que não posso estar muito tempo num lugar, e não posso sair dele sem pena?
Já me está custando ter deixado Santarém. Por que não havíamos de partir amanha, e ter ficado ainda hoje ali?
E hoje que é sexta-feira?... Mau dia para começar viagem!
Sexta-feira! Era o dia aziago do nosso vale, da pobre velha cega que ai vivia sua triste vida de dores, de remorsos e desconforto, esperando porém em Deus, conformada com seu martírio: martírio obscuro, mas
tão ensangüentado daquele sangue que mana gota a gota e dolorosamente do coração rasgado, devorado em silêncio pelo abutre invisível de uma dor que se não revela, que não tem prantos nem ais.
Era na sexta-feira que o terrível frade, o demônio vivo daquela mulher de angústias, lhe aparecia tremendo e espantoso diante de seus olhos cegos, elevado pela imaginação ás proporções descomunais e gi-gantescas de um vingador sobrenatural.
Era a figura tangível, e visível à vista de sua alma, do enorme pecado que contra ela estava sempre.
Creio que escuso dizer que não tenho eu esta superstição dos dias aziagos que tinha a desgraçada velha, que a sua Joaninha partilhava. Mas confesso que, recordando as fatalidades daquela família e daquele dia, não gostei de voltar nele ao vale de Santarém,
Estávamos porém no vale; e ia eu via de longe aquelas arvores e aquela janela, que tanto me impressionaram, quando estas reflexões me acudiam ao espírito e mo contristavam,
Afrouxei insensivelmente o passo, deixei tomar larga dianteira aos meus companheiros de viagem: e quando chegava perto da casa, tinha-os perdido de vista.
Involuntariamente parei defronte da janela: mordia-me um interesse, urna curiosidade irresistível... Nem viva alma por aqueles arredores; apeei-me e fui direito para a casa
Apenas passei as árvores, um espetáculo inesperado, uma evocação como de encanto me veio ferir os olhos.
No mesmo sitio, do mesmo modo, com os mesmos trajos e na mesma atitude em que a descrevi nos primeiros capítulos desta história, estava a nossa velha irmã Francisca...
Ela era e não podia ser outra; sentada na sua antiga cadeira, dobando, como Penélope tecia, a sua interminável meada. Não havia outra diferença agora senão que a dobadoira não parava, e que o fio seguia, seguia, enrolando-se, enrolando-se continuo e compassado no novelo; e que os braços da velha lidavam lentamente, mas sem cessar, no seu movimento de autômato que fazia mal ver.
Defronte dela, sentado numa pedra, a cabeça baixa. e os olhos fixos num grosso livro velho, que sustinha nos joelhos, estava um homem seco e magro, descarnado como um esqueleto, lívido como um cadáver, imóvel como uma estátua, Trajava um non-descríptum negro, que podia ser sotaina de clérigo ou túnica de frade, mas descingida, solta e pendente em grossas e largas pregas do extenuado pescoço do homem.
Também não podia ser senão Frei Dinis,
Cheguei junto deles; não me sentiu nenhum dos dois; nem me viu ele, o que só via dos dois.
Sem mais reflexão, e continuando alto na série de pensamentos que me vinha correndo pelo espírito, exclamei:
— E Joaninha?
— Joaninha esta no Céu! - respondeu sem sobressalto, sem erguer os olhos do seu livro, a sombra do frade, que outra coisa não parecia.
— Joaninha, pobre Joaninha! Pois como foi, como acabou a infeliz?
— Joaninha não é infeliz: foi ser um anjo na presença de Deus.
— E... e Carlos? balbuciei eu hesitando, porque temia a suscetibilidade do frade.
— Carlos! — respondeu ele erguendo enfim os olhos e cravando-os em mim...
E oh! que nunca vi olhos como aqueles, nem os hei de ver!
— Carlos!... E quem é que mo pergunta? Quem é que tanto sabe de mim e dos meus?... Dos meus? Eu não tenho meus; sou só.
— Só! Não está aqui, que eu vejo!...
— Vê essa mulher morta que ai ficou, que eu matei, e que está a espera que dê a hora de eu a enterrar, mais nada. Eu estou só e quero estar só. Morreu tudo. Que mais quer saber?
— Venho de Santarém...
Santarém também morreu; e morreu Portugal. Aqui não vive senão o meu pecado, que Deus não perdoou ainda, nem espero...
— A nossa religião fez uma virtude da esperança,
— Fez.
— E nisso se distingue das outras todas.
— Pois ainda há quem o saiba nesta terra?
— Há mais do que não houve nunca - pelo menos há mais quem o saiba melhor.
— Pode ser: os juízos de Deus são incompreensíveis.
— E infinita a sua misericórdia.
— Mas a sua cólera implacável, a sua justiça tremenda.
— A misericórdia é maior.
— Quem lhe ensinou tudo isso?
— O Evangelho, o coração e minha mãe que mos explicou ambos.
— Sente-se aqui... ao pé de mim.
Sentei-me. O frade pegou-me na mão com as suas ambas, e pôs-me os olhos com uma expressão que nenhuma língua pode dizer, nem nenhum pincel pintar.
Esteve assim algum tempo, como quem me observava. Vi-lhe apontar claramente uma lágrima, vi-lha retroceder, e ficarem-lhe enxutos os olhos. Senti-lhe estrangular um suspiro que lhe vinha à garganta; percebi distintamente o estremeção que lhe correu o corpo; mas observei que todo se serenou depois.
Disse-me então com voz magoada, mas plácida e sem aspereza já nenhuma:
— Sabe a história do vale?
— Sei tudo até a partida de Carlos para Évora.
— Aqui tem a carta que ele escreveu.
Tirou do breviário um papel dobrado, amarelo do tempo e manchado, bem se via. de muitas lágrimas, algumas recentes ainda.
— Leia.
Li.
Esta era a carta de Carlos.
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Viagens na minha terra
RomanceViagens na minha terra - Publicado em 1846, o livro de Almeida Garret é uma mistura de realidade e ficção. No livro, o autor narra uma viagem verdadeira entre Lisboa e Santarém.