DOIS

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Morgan
— Seu nome?
— Eu não me lembro. Na verdade eu não me lembro de muita coi- sa, e quando eu falo isso quer dizer de nada. Eu não me lembro.
— Tudo bem, pegue uma ficha e espere. Próximo!
— Hum, há esse nome disponível — disse outro homem de uma aparência tão horrível que chegava a dar medo. — Morgan, esse será o seu nome a partir se agora. Agora pode ir andando.
Andando essa era minha rotina no último tempo, era a única coisa da qual lembro e pelo jeito não sou a única, pois todas as pessoas só fazem exatamente isso, andar. Às vezes, esbarramos uns nos outros e quando abro a boca para me desculpar a única coisa que sai são gemi- dos, chega até ser deprimente.
Ninguém parece muito bem, estão parecendo defuntos, talvez eu também esteja, eu não sei, mas tenho a certeza de que também não estou nada bem. Tenho uma necessidade imensa de correr para a pri- meira coisa viva que achar e comer seu cérebro, sim, você leu certo o cérebro. Eu sei é nojento, não me culpe! Não temos muitas alternativas por aqui ultimamente.
Já tinha transcorrido alguns dias, anos, séculos, milênios? Nem sei! Nada mais se faz aqui, além de caminhadas sem fim. O único contato físico acontece quando esbarro em outro caminhante, tal como ocorreu quando eu esbarrei pela milésima vez em alguém que eu nunca soube quem realmente era.
Foi então que eu vi no chão uma foto de um garoto e uma garota. Sem aviso, imagens foram passando por minha cabeça rápido demais. Eu era a garota! Tudo fazia sentido agora, bom quase tudo, mas esse garoto quem era ele?! Eu não fazia a mínima ideia de quem era, mas de uma coisa eu sabia eu iria encontrá-lo.
Sabe aquela sensação de déjà vu que temos às vezes?! Então, eu estava tendo esse sentimento nesse exato momento, minhas pernas se moviam rápidas demais me dando a impressão de que cairia a qualquer momento, mas, mesmo assim, eu não parei. Bom... isso até eu colidir com um ser horrível com uma aparência nojenta e asquerosa, tão alto que parecia mais um poste. A criatura não falava e sim gemia, um ge- mido entre agudo e profundo. A coisa me arrastava pela floresta. Final- mente, eu acabei parando sabe-se lá como. Incrivelmente, o ente não parecia estar se importando muito para o fato de que talvez eu estivesse machucada, mas felizmente, não era o caso. Por mais que eu passasse em cima de galhos pontudos e pedras ásperas, não me machucava e en- tão como dizia eu parei, ou melhor, esse monstro parou e caiu no chão ao meu lado com um machado fincado na cabeça, escorrendo sangue. Essa foi minha última lembrança, pois quando acordei não estava mais na floresta e sim em uma sala tenebrosa, claustrofóbica muito fedida de paredes gosmentas! Para piorar sem a minha foto.
Olhei fixamente e depois desviei o olhar, aquilo era assustador. Uma figura de pesadelo veio andando em minha direção, eu fui me afastando até bater na parede coberta de repelente gosma. Agora não tinha mais para onde ir, a forma grotesca chegou bem perto, eu virei o rosto, para não sentir seu odor de podridão, mas isso não adiantou. O bruto pegou no meu braço com violência e saiu me puxando. Che- gamos a outro cômodo todo espelhado. Ali eu levei um susto, ao ver meu reflexo naqueles espelhos sem manchas! Eu poderia ter gritado se conseguisse. Para meu horror, eu estava tão assustadora quanto aquela fera que me dominava e ainda mais bizarra do que aqueles que eu tinha visto mais cedo, há dias, ou seriam séculos? Eu não sei, eu não me lem- bro. Queria chorar, mas nenhuma lágrima saía. Entrei em desespero. O que estava acontecendo comigo? Para onde aquela monstruosidade estava me levando? Eu estava com medo de mim mesma. Eu era a garo- ta da foto, mas agora eu não me reconhecia mais, estou tão feia, minha pele está toda nojenta, extremamente repulsiva, meus olhos parecem saltar do meu rosto, minha boca está com uma cor estranha, eu estou com uma cor estranha, minhas mãos... Eu parei de olhar para mim, não estava preparada para aquilo. Então eu olhei para frente, desvian- do o olhar daquela aberração! O que queria de mim, afinal? Continuei andando presa naquelas garras abjetas, tentando não pensar no que eu tinha acabado de ver no espelho. Sentia que aquela aparição não era como os outros seres que em mim esbarravam naquele interminável caminhar em uma espécie de limbo.Tinha um olhar ruim, parecia ser mau e faria, sem dúvida, algo para me machucar ainda mais. A úni- ca certeza que eu tenho agora é que preciso achar o garoto que estava comigo naquela foto. Mesmo eu não sabendo quem ele é, eu sei que o conheço. Estou assustada demais, preciso de alguém e apesar de misterioso, este menino da foto parece ser confiável. Ah aquela fotografia! Daria tudo para recuperá-la. Lá estava aquela criança ao meu lado, com um sorriso lindo olhando para mim e eu estava rindo! Ah! Que gato! Era tão bonito e aquele lugar parecia ser perfeito. Eu preciso sentir isso novamente, mesmo não lembrando exatamente o que é! Eu sei que é algo bom. Preciso achá-lo e eu vou!
Violentamente, eu vi meu instante de felicidade se partir como um espelho quebrado! Quando me dei conta, fui colocada à força em algum tipo de cadeira de tortura! Minhas mãos estavam solidamente amarradas. Porém, notei que com um simples puxão eu me livrara das cordas como se fossem barbantes! Que lugar é esse?! Percebi que estava em uma sala espelhada! Diante dos meus olhos só reflexos variados e desconexos! Seria a mesma na qual eu estivera antes?! Sinceramente, não saberia dizer! Outro ser nojento igual ao que me dominara apa- receu de lugar nenhum! Me olhava com enorme ódio! Cheguei a me espremer na cadeira de tanto pavor!
— Você não deveria ter saído correndo daquele jeito — resmungou o truculento indivíduo, e por mais que só saíssem rosnidos de sua boca rasgada eu conseguia entender perfeitamente suas palavras! Porém, ar- dentemente, eu desejei não poder entender seu horrível ronco que in- felizmente soou claramente aos meus ouvidos. — E você terá punição por tal ato!
Mas quando foi que eu corri? Como?! Eu fui arrastada! Tudo tão sem sentido! Tento achar respostas! Quais são de fato as perguntas se na minha cabeça só tem a imagem daquela foto que já não tenho?! Sou como um cachorro girando em círculos atrás da própria cauda!
Fico forçando a memória e não adianta nada! Eu não me lembro de muita coisa, não me lembro do meu nome real, da minha idade, da minha família de absolutamente nada! Talvez isso explique a razão de eu não estar tão assustada pelo fato da minha punição ser minha exe cução! Pelo visto, não vou deixar saudade! Ninguém vai sentir minha falta! Mas eu morrerei com um vazio na alma. Eu nunca descobrirei quem é o garoto da foto. Mal senti quando fui brutalmente conduzida por corredores sinuosos, fedorentos e mal iluminados até uma área ao ar livre, ampla, na verdade, uma clareira. Era dia. Entre nuvens escapa- va um tênue mormaço. Estava quente. O local lotado. Cheio de milha- res de seres nojentos! Figuras humanas apodrecidas que pareciam estar mortas e ainda assim vivas. Órgãos internos expostos, se desfazendo e ao mesmo tempo pulsando como que repletos de macabra energia! Na- quele momento, eu acreditava que deveria sentir horror ou algo do tipo, mas a única coisa que vinha à minha mente sem parar, era a imagem daquela foto. Me levaram para o centro da clareira. Antes, amarraram minhas mãos para trás, desta vez com correntes. Me forçaram a ajoelhar no chão, enquanto minha cabeça era apoiada em uma pedra. Iam me degolar! Então, quando um daqueles monstros levantou algo que parecia ser um machado preparando-se para o golpe fatal, eu fechei os olhos e esperei a dor que deveria vir, mas a única coisa que senti foi o impacto do meu corpo batendo no chão e o zumbi que empunhava o machado estrebuchando agonizante, caindo por cima de mim! Alguém o havia atingido e me salvado, mas quem?! Instantaneamente, senti mãos macias me erguerem do solo.
Uma garota loira estava me ajudando a levantar. Se mexia velozmente e era difícil acompanhá-la, por isso tínhamos que parar várias vezes para que ela se adaptasse à lentidão de meus movimentos. A garota era baixa não devia ter mais de 1,60 m, possuía cabelos bastante compridos e lisos. Era magra, mas não exageradamente. Seus olhos de um azul magnético cintilavam! Pele branca. Suas bochechas estavam vermelhas por causa do esforço que fazia. Com a voz entrecortada, me dirigiu estas palavras:
— Zoey, meu nome é Zoey — disse a garota em uma voz ofegante. — Agora se quiser sair viva daqui é melhor corrermos. — Atrás de nós ouvimos os rugidos raivosos da multidão monstruosa que em lugar de assistir a uma execução acabou presenciando um resgate!

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